Angel's Egg
Ficha técnica:
Ano: 1985
Gênero: ficção científica, fantasia, mistério
Direção: Mamoru Oshii
Duração: 71 min (1h11)
Gênero: ficção científica, fantasia, mistério
Direção: Mamoru Oshii
Duração: 71 min (1h11)
Sinopse:
Uma garota misteriosa vaga por uma paisagem desolada e sobrenatural, carregando um grande ovo. [Traduzida do Letterboxd]
Crítica:
Como vocês puderam perceber, a sinopse é a mais curta de toda a série Pós-créditos, e isso não é à toa. Angel’s Egg, do mesmo criador do aclamado Ghost in the Shell (1995) é um filme extremamente vago e tem como ferramentas básicas o simbolismo, a analogia e a livre interpretação de ideias e conceitos apresentados para construir a sua “narrativa”. Escrevo a palavra entre aspas porque é possível resumir a história de pouco mais de uma hora e dez em menos de três frases, a primeira delas sendo a própria sinopse. Também acho que esta resenha em particular deve ser lida mais como uma análise mais profunda do filme e uma discussão geral do que constitui um boa obra do que com o destrinchar dos fatos da história. Isso porque são somente isso: fatos, um atrás do outro, porém pouco se esforçam para atuar como peças de uma história, com uma cadeia lógica de causa e consequência. Trarei os acontecimentos mais tarde; por ora, vamos falar sobre o anime de modo geral e seus aspectos mais técnicos.
Angel’s Egg tem, desde o início, a filosofia de exposição visual, isto é, apresenta elementos do universo em sequências contemplativas e longas. O diálogo é escasso durante toda a duração do filme, e por mais que as poucas conversas entre os personagens sejam igualmente enigmáticas e sem coesão aparente, acredito que são reveladoras o bastante para pelo menos garantir certa especulação sobre o caráter, o íntimo e as intenções deles. A ambientação sonora é impecável e te coloca exatamente no local que você está vendo: seja à beira de um lago, seja numa viela de uma cidade fantasma no meio da noite. Aponto, especialmente, o equilíbrio e, mais importante que isso, a justaposição de momentos de quietude e silêncio com momentos de intenso barulho e imediatismo. Criam-se instantes introspectivos, nos quais acompanhamos a garota em seu passeio sem razão aparente, enquanto molha os pés na água, observa o ovo que carrega — para então serem seguidos por instantes de tensão, de surpresa, até de medo. Visualmente falando não há nada o que dizer senão elogiar o belo estilo que acentua o sentimento melancólico, monocromático e desolador de todas as localidades do filme; atmosfera essa que é replicada universalmente, em cenários e personagens, em falas e atitudes. O artista por trás desse belo trabalho não é desconhecido: Yoshitaka Amano é mais lembrado pela sua contribuição para a famosa franquia de jogos Final Fantasy.
Antes de seguir em frente, devo dizer que esse não é um filme que irá agradar a todos, muito menos se for visto no “humor errado”, digamos assim. Definitivamente não é o filme para se ver com sono, ou como um passatempo. É para dias reflexivos e existenciais que afligem cada um de nós, em maior ou menor grau. Quando não quisermos ação, mas sim uma jornada para embarcarmos num mundo estranho e alheio. Quem gosta dos trabalhos de Andrei Tarkovski, diretor de Solaris (1972) e Stalker (1979), certamente irá apreciar as qualidades de Angel’s Egg.
Devido a essas características, toda a narrativa é envolta em mistério e dúvida. Diria até mais: é menos um mistério a ser solucionado e mais uma pergunta a ser imaginada, a ser especulada. Não se trata tanto de conectar pontas soltas — há tantas delas que é preciso também criar mais corda, para que enfim possamos chegar a alguma amarração que nos faça sentido. Entretanto, não há como saber se o nó cego que demos foi o nó corredio que o criador pretendeu nos mostrar. Ainda assim, é o máximo que pode ser feito. Eis, então, a amarração que consegui conceber, após ver a opinião de algumas pessoas e juntar com as minhas ideias.
Interpretação (contém spoilers!)
Ressalto mais uma vez que esta é uma interpretação possível para os fatos que acontecem no filme. Como expliquei, não há uma liga narrativa que una acontecimentos entre si, a não ser a história mais óbvia: a garota encontra um rapaz que começa a segui-la e insiste em saber o que há dentro do ovo. Por isso, devemos voltar a atenção às imagens que o filme nos transmite e aos símbolos que ele nos mostra. É perceptível, por exemplo, a ênfase na simbologia cristã: a cruz carregada pelo andarilho, a gravação numa das paredes da “nave" da garota, que lembra bastante a Árvore da Vida do Jardim do Éden, a própria conversa do mito da arca de Noé que eles têm, lá pela metade do filme.
O que me parece melhor explicar os acontecimentos em Angel’s Egg é que eles narram a perda da fé por parte do andarilho, o processo de aceitação da falta de propósito da vida e o luto ao perder uma crença fundamental para sua visão de mundo. A garota, inocente, carrega o ovo consigo, um símbolo para a sua própria crença. A inocência da fé é crer naquilo que não se pode ver, acreditar em algo que não se pode provar. Pois “a fé é a certeza das coisas que se esperam e a convicção dos fatos que não se veem.” (Hebreus, 11:1). E então a garota cuida do seu ovo, de sua fé, afinal, é esse o seu propósito, é aquilo que lhe dá conforto e esperança em meio à solidão e à palidez do mundo pós-apocalíptico que a cerca.
O andarilho, por outro lado, representa o cético, o desacreditado. Gosto de descrevê-lo com essas duas palavras pois penso que, embora parecidas, tenham desdobramentos diferentes. Ao passo que o cético é um questionador, é aquele que busca evidências e respostas para suas perguntas no mundo e exige tais fundamentos das respostas que lhe fornecem, o desacreditado conota alguém que perdeu a esperança, que anda a carecer de propósito, que tropeçou na conclusão da indiferença do universo e não soube como se levantar. E é o que vejo no andarilho: alguém que se perdeu, que não mais se recorda de quem é, para onde vai, há quanto tempo existe, se existe… E, ao encontrar a garota, ao ver a inocência, os sinais proféticos de imagens miraculosas (um ovo, o dilúvio, o pássaro que nunca retornou para a arca), necessita de saber as respostas. É preciso ver os fatos para deles ter convicção, é preciso ter o que se espera, fé não basta, deve-se ter razão para acreditar. Então busca saber o que há dentro do ovo.
Quero destacar um diálogo entre os dois. Ele pergunta à menina o que ela acha que há dentro do ovo. “Eu escuto uma respiração suave”. “É só a sua própria respiração”, responde ele. “Escuto o barulho de asas batendo”, ela insiste. “São os sopros do vento”, ele conclui. Essas poucas palavras retratam bem a dinâmica da dupla, a dicotomia entre a esperança e a resignação. E, no entanto, o andarilho parece querer acreditar, embora saiba que aquilo é uma impossibilidade. Então é tirada a prova dos nove. Enquanto a menina dormia, ele quebra o ovo e, vendo que estava vazio, vai embora, com a certeza daquilo que sempre soube e talvez não quisesse admitir a si mesmo. Ao acordar, a menina entra em desespero pelo ovo quebrado, por ter tido a sua fé também quebrada, sendo tomada pelo mesmo sentimento de que seu mundo estava desabando. Quando vai atrás do andarilho, acaba caindo num buraco e afunda na água, tornando-se mulher adulta antes de soltar o último suspiro e fazer nascer milhares de outros ovos na água.
Há muitas outras cenas e elementos do filme que eu poderia trazer para ilustrar mais a ideia, mas acredito que já é o suficiente, e também tenho outro assunto importante para tratar logo abaixo. É impossível saber exatamente qual é o verdadeiro significado de cada aspecto de Angel’s Egg — mesmo porque não acredito que haja um —, mas é interessante reconhecer os temas que permeiam a jornada: o ceticismo e a fé, a esperança e a desolação, a ignorância, o existencialismo, a desistência, entre tantos outros que compõem a complexa reflexão da condição dos personagens. Assistimos a como essas ideias se entrelaçam, como se comportam, como brigam entre si e como coexistem no mesmo lugar (e até, quem sabe, na mesma pessoa) e nos cabe tentar imaginar por que o criador quis falar sobre elas do jeito que fez.
O filme como uma pintura
Existe certa injustiça em avaliar filmes, na medida em que sou obrigado a utilizar a mesma métrica para obras que são totalmente diferentes umas das outras. Tento ser o mais justo possível e usar critérios iguais, mas nem sempre isso é possível. Vez ou outra, sou obrigado a rever os meus conceitos e olhar para as coisas por outro ângulo. O que posso dizer é que, se considerarmos um filme como algo que tem o objetivo de transmitir uma mensagem para quem o assiste, ou seja, um canal de comunicação (ainda que com elevada licença poética, vá lá), então posso dizer que Angel’s Egg não realiza essa tarefa da melhor maneira. São perguntas abertas demais, pouca ou nenhuma resposta, tudo é muito vago e indefinido. É difícil até especular as intenções verdadeiras dos personagens e as causas reais dos eventos porque não há um mínimo de “pista” para que possamos ligar os pontos, como disse durante a crítica. Por esse viés, enquanto construção de narrativa, não posso dizer que gostei. Entretanto, quero levantar uma reflexão.
Passados alguns minutos do fim do filme, discuti com meu amigo que havia assistido comigo sobre os significados e metáforas ali presentes, ambos concordando que era vago demais. Vimos num vídeo que Mamoru Oshii, até então cristão convicto, estava passando por um processo de perda de sua própria fé pouco antes do lançamento do filme. Isso corrobora bastante com a interpretação a que chegamos, porém, ao consultar mais tarde a página da Wikipédia sobre o filme, a menção a essa história se resume apenas a uma suposição. Oshii já disse em entrevistas que não sabe dizer, realmente, o que foi que criou com esse filme, nem o que quis dizer. Pensando nisso, deixei de olhar para Angel’s Egg como uma narrativa que quer passar uma mensagem, e comecei a analisá-lo como um puro produto artístico. Um objeto que existe.
Se a história acima for verdadeira, eu consigo visualizar o diretor passando por momentos de angústia ao notar a mudança radical no modo como vê o mundo. Assim, o filme não passa da maneira que ele teve de expressar o seu conflito, a sua válvula de escape, o seu desabafo. O filme tem a impressão de ser um desabafo — um rascunho cru, algumas ideias e sentimentos explorados lá e cá, cenas avulsas que foram concebidas e se encaixaram porque simplesmente quiseram se encaixar. Com isso, o que era para ser uma história na verdade é uma imagem de uma hora e dez minutos. Posso comparar a ver uma pintura: prestamos atenção em cada detalhe, em cada cor, em cada traço — mesmo sendo somente uma imagem, algo que nos desperta algum sentimento, a princípio desconhecido, mas que se revela à medida que olhamos, e olhamos, e olhamos...
Nesse sentido, identifico o meu estilo de escrita de alguns textos com essa abordagem: frases com sintaxe o bastante para expressarem o bom português, porém de semântica misteriosa, ainda que eu jamais faça isso intencionalmente. Certas vezes, os sentimentos são indefinidos demais para o idioma humano. É mais comum do que parece. Talvez seja por isso que eu tenha gostado tanto. Nunca pensei que veria uma pintura num filme.
Acredito que o raciocínio se aplique aqui: o filme pouco diz e nada explica, é apenas uma amálgama de imagens que nos evoca algo que não compreendemos, mas sentimos. Cenas que são pinceladas, personagens que são texturas — um filme que é um quadro. Que usa seu formato para transmitir uma sensação, sem nos invadir com uma mensagem explícita, convidando a subjetividade a preencher lacunas que, sob um segundo olhar, podem nem ser, de fato, lacunas, apenas espaço, ar livre para respirar, contemplar o silêncio e observar as perguntas que se formaram dentro de nós. A propósito, as respostas que formulamos e especialmente como chegamos a nossas interpretações pessoais também é importante; afinal, não é disso que o filme trata? De crenças sem fundamento aparente? De suposições sobre elementos que não teríamos a mínima capacidade de entender por completo? Do dilema entre aquilo que se espera e aquilo que de fato é? Do desejo por um propósito, de sua perda e de sua busca inalcançável? Que sentimentos essa vaga e abstrata história evoca em você? E mais importante: o que as suas respostas dizem sobre si mesmo? Se posso colocar da forma mais simples possível, Angel’s Egg é um teste de Rorschach. Uma imagem abstrata que parece algo, que lembra algo, mas não é nada em particular. Pode ser várias coisas ou nenhuma delas. Porém, a pergunta permanece: o que você vê?
Obrigado por ler esta crítica até aqui!
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Não é meu estilo de filme, mas adorei a forma e coerência com que foi explanado sobre o referido tema.
ResponderExcluirPARABÉNSSS...👏🏼👏🏼👏🏼
Não é meu estilo de filme, mas adorei a forma e coerência com que foi explanado sobre o referido tema.
ResponderExcluirPARABÉNSSS 👏🏼👏🏼👏🏼