quinta-feira, 30 de junho de 2022

a baixa porém perceptível amplitude de um oceano em calmaria

 Faz muito tempo que não escrevo para o blog. Muito mesmo. E eu achando que esse seria o ano em que as postagens mensais engatariam. Outra vez, deixei passatempos para lá, livros que poderia ler, filmes que poderia assistir, textos que poderia (e deveria) ter escrito. Os planos que tinha foram facilmente substituídos por outros que as circunstâncias me impuseram. Na verdade, foram muito poucas as coisas que eu supunha sobre este ano que se tornaram realidade. A minha vida mudou tanto em tão pouco tempo que ainda estou processando o impacto do soco, o rosto começou a ficar dormente só agora. O jeito é esperar que o hematoma não seja muito grande.

Lembro-me de que o último texto teve muito a ver com o tema de identidade, e não me sinto particularmente feliz em informar que pouco progresso aconteceu de lá para cá. Ou, se houve, ainda não consta no sistema. Recentemente comecei a trabalhar em um banco, então as analogias estão calibradas conforme o mundo burocrático de procedimentos administrativos e contratos de entrelinhas intermináveis. Tentarei, porém, manter um grau aceitável de poesia na prosa; não quero que minhas frases fiquem tão inertes quanto os computadores quase inoperantes da minha agência. Eu sou um escritor tão bom quanto minha organização mental me permite ser; por isso mesmo é que já me desculpo de antemão pelas palavras despejadas ao acaso nisso que quero considerar um retorno.


Acho que só estou aqui para contar um pouco sobre o que tem acontecido comigo. Não que seja relevante. Eu não escrevo nada há muitos meses, especialmente em português — tenho tentado minha sorte em alguns escritos em inglês, apenas alguns rabiscos e devaneios que podem, num futuro distante, tornar-se um produto concreto. Acho curioso como eu tenho uma capacidade maior de inventar toda uma identidade para alguma criação minha — logomarcas, capas, ideias gerais de estrutura e conceito —, mas quanto ao conteúdo em si... aí já são outros quinhentos, outros mil, outros milhões. O interessante caso daquele cuja imaginação lhe permite sonhar, mas cuja falta de habilidade lhe restringe a realização. Ou seria de esforço mesmo? É outra resposta, e provavelmente a verdadeira.

Sinto falta de vir aqui com um propósito. De vir aqui resenhar um livro, de conversar sobre um projeto besta que tive na faculdade, de falar sobre como foi descobrir Edgar Allan Poe. Parece que agora é tudo indefinido, e que escrevo por escrever e penso por pensar. "Escrever para não enlouquecer", alerta o título de um dos livros de Charles Bukowski. Talvez eu tenha chegado tarde, e enlouquecido entre um hiato e outro. E então a escrita é só um paliativo, o Tylenol que se engole para enfiar, estresse abaixo, a enxaqueca que não larga os dias úteis — com a ingenuidade de que meio grama por dia cura anos de maus tratos ao próprio juízo. A única coisa que ele faz é tornar as suas páginas, que outrora eram imaginativas e agradavelmente sinuosas, em papeladas rijas de comparações com a monotonia da vida adulta. Quem foi que eu me tornei, e quando foi que a loucura chegou ao ponto de se assemelhar com o pensamento regular e pragmático do escriturário mediano que sou?

Eu sou chato pra caralho.

Uns tempos atrás eu pude ler Solaris, de Stanisław Lem. Até cheguei a começar a resenha, mas como não podia ser diferente, o texto ficou incompleto e eu acabei perdendo a inércia da inspiração e a maior parte dos raciocínios que eu pretendia elaborar. Mas uma coisa ficou por aqui, e ficará por algum tempo: a ideia do oceano. Não vou revelar em que medida isso é relevante no livro, mas o conceito do oceano presente no planeta abordado pelo autor me faz refletir e chegar à conclusão de que é essa metáfora que mais se encaixa em mim atualmente. Não parece que eu estou em um oceano, mas que eu sou o oceano, ou pelo menos quem eu acho que sou, os símbolos que me compõem, as atitudes que me fazer ser eu.

Digo um oceano porque é, por natureza, uma criatura disforme — o que retorna ao problema de identidade sobre o qual falei mais cedo, e o qual foi também estrela de textos passados. Não só isso: o oceano, especialmente o oceano de Solaris, tem um interior vivo e com mistérios que perduram gerações; algo está sempre se mexendo, algo está sempre a passar por processos biológicos e químicos: uma amálgama indissociável e muitas vezes incompreensível de componentes e transformações para as quais não há explicação mais completa do que chamar de "coisas". A superfície parece calma, mas há sempre uma pequena ondulação; em algum lugar lá embaixo, o oceano digere as suas próprias entranhas, flui por suas próprias correntezas (frequentemente contraditórias), e finalmente regurgita as suas ondas, que vão quebrar lá longe, em alguma praia de não se sabe onde. Talvez não haja ninguém para vê-las molhar a areia, mas elas vão fazê-lo mesmo assim. É como o oceano é, e é como eu me sinto no momento: amorfo.


Aqueles que me acompanham há algum tempo podem perceber que é uma característica do meu estilo de escrever o uso do imperativo, como se eu estivesse falando com outra pessoa. Além de eu achar essa uma técnica boa para interessar o leitor — já que faz parecer que eu estou me direcionando a ele, embora muitas vezes não seja o caso —, os motivos por trás dessa escolha são mais inconscientes do que deliberados. Fato é que a escrita é, para muitos, uma tentativa de diálogo consigo mesmo. Eu sei que a palavra monólogo existe, mas escrever não é um monólogo. Porque o escritor que escreve e o escritor que lê não são a mesma pessoa, embora contradigam os documentos legais e todas as evidências empíricas que os olhos possam oferecer. Escrevo para uma versão de mim que necessita ouvir o que tenho a dizer. Mas isso nem sempre acontece. Fato é que a escrita é, para muitos, uma tentativa de diálogo consigo mesmo. Se ainda há interlocutor na história, jamais teremos como nos certificar. Pode ser que tenha se cansado, e que estou falando para o vazio. Não seria a primeira vez que isso teria acontecido.

É engraçado observar a situação como alguém que tem consciência da própria condição, como alguém que sabe que as coisas não eram para estar do jeito que estão, mas que tampouco tem um plano de ação contra isso. Este texto não tem absolutamente nenhuma estrutura — e mesmo assim parece ter. Há uma coesão, uma liga mínima que junte os pedaços, mas intenção não há. Nem mesmo eu sei qual será o assunto, a metáfora, alusão, metonímia ou outro artifício usado no próximo parágrafo (ou se haverá um próximo parágrafo). Muitas vezes a piada ou o desafio é descobrir uma maneira de fingir que tudo havia sido premeditado, tudo havia sido intencional; mas na verdade nada foi. Temo que esse fenômeno tenha transbordado para fora do mundo da literatura.

Quem poderá realmente saber o que guardam as águas estranhas e inquietas do oceano?

"O homem saiu para encontrar outros mundos, outras civilizações, sem saber nada sobre seus próprios recessos, ruas sem saída, poços e portas bloqueadas e escuras."
— Stanisław Lem, Solaris



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