domingo, 2 de janeiro de 2022

as mãos que seguram a fotografia

Ainda é o segundo dia do ano e já me vejo a redigir um novo conteúdo para o blog, para a minha companhia inseparável, que por tantas aventuras e por tantos desastres me acompanhou. Ainda que eu não saiba exatamente quando vá finalizar ou publicar este texto, parece que eu vim cedo desta vez. É relativo. Para quem está habituado em produzir lá para os dias vinte e tantos do mês, escrever ainda na primeira semana pode soar como maior comprometimento; ou, como outros podem notar, como a compensação da falta de material no mês anterior. O copo d'água está meio cheio, ou meio vazio, o excesso ou a falta estão nos olhos e não na realidade. Eu acredito que já está na hora de eu encher o resto do meu copo — ou beber o que há nele de vez.

Como escritor, eu frequentemente me encontro em situações contraditórias — meu senso de humor as consideraria engraçadas também. Parte do modo como enxergo a vida, e já mencionei isso algumas vezes por aqui, é crer que a partícula fundamental da felicidade são os momentos. Estou convicto de que são eles que constroem, pedacinho a pedacinho, a imagem final e completa de nossa memória, o retrato analógico e penosamente revelado do que foi nossa vida. Das mais variadas durações e de diversos graus de importância, os momentos a que me refiro são os intervalos de tempo dos quais nunca nos esquecemos, seja pela boa sensação que nos afaga a cabeça ou pelas lágrimas que cicatrizaram sobre nossas bochechas. Esses instantes que o tempo não apaga, que a rotina não empalidece, que os anos não devoram — são esses que nos definem, que moldam o modo como se enxerga e como se sente o mundo e as pessoas. Já faz alguns anos que sou um fiel adepto dessa ideia, e é aí onde está a ironia. Dia sim, dia não, eu recolho minhas memórias em uma escrivaninha imaginária e as fico admirando. Nessas horas, é inevitável questionar: que farei com elas?

Rio porque posso, mas a verdade é que muitas vezes o choro seria preferível (e, em algumas delas, é ele que se sobrepõe). Que absurdo. Um escritor, um artesão das palavras, dos livros; aquele cuja ambição é gravar-se em papel, imprimir-se em páginas, livrar-se de sua efemeridade... um escritor querendo se desfazer dos seus próprios momentos. Um autor que sente a ânsia instintiva de queimar os próprios trabalhos; um poeta que almeja destruir os próprios versos. Mas o que posso dizer? É isso mesmo que sinto: a vontade de perder as memórias, o desejo de comprar outro rolo de filme, e ver se saem fotos melhores da próxima vez.

O problema é de identidade mesmo, pois eu já não consigo mais ser a pessoa que eu era há, digamos, um ano. Nem se eu quisesse — e eu queria, e muito. Mas os pensamentos agora se esforçam para completar, eu já perdi a sintaxe de mim mesmo, e com frequência custo a me compreender. Grande parte disso vem, não podia ser outra coisa, da diferença entre o que sinto e o que sou; da comparação entre o que minha vida é e o que gostaria que ela tivesse sido. O tempo verbal é esse mesmo, tivesse sido. Não é seja, nem fosse, pois há muito deixou de ser uma possibilidade real. Essa disparidade é o epicentro de minha agonia, e a raiz do meu dilema: e esses momentos que me definem, o que faço deles? Jogo-os fora ou os ponho num álbum de fotografias? Seriam eles as âncoras que me fincam ao passado ou os mapas que me guiarão em frente? E, mesmo que eu conclua que preciso deles, por que é que, depois de tanto tempo, ainda dói tanto?

Por que dói ser eu?

Isso me faz lembrar de quando joguei Undertale, em 2016. Em uns dos primeiros locais do jogo, há um espelho e, ao interagir com ele, aparece a mensagem "é você". Depois de fazer quase todas as missões e encontrar todos os personagens, muito perto do final, há um local muito semelhante a esse primeiro, com um espelho igual ao anterior. Ao interagir, a mensagem diz "apesar de tudo, ainda é você". Eu gostaria muito de entender o que isso de ainda ser você significa, porque, sinceramente, eu já nem consigo ver meu próprio reflexo.

Não foi por falta de tempo que parei de escrever para o blog por tantos meses. Não foi por falta de ideias, também. O que me motivou a redigir leitmotif, a publicação de julho, poderia igualmente me fazer falar por meses e mais meses a fio. Não é que não havia o que falar, é que eu não sabia como. E não sabia como porque não era mais eu. A mente estava afiada, os pensamentos na ponta da língua, as ideias eram minhas — mas as mãos não. As mãos, que realmente colocam pra fora o que dentro está, já eram de outra pessoa. E teria sido falta de educação pedi-las emprestado a alguém que eu ainda nem conhecia, e ainda não conheço direito.

Pela segunda vez em menos de meio ano, escrevo um texto que sou incapaz de terminar. Terei de deixá-lo inconclusivo, um parêntesis aberto que reduz tudo o que for dito a um comentário, uma nota de rodapé, até que se consiga fechar. O tema que o fez nascer está longe de acabar, e eu não consigo me pôr a dizer tudo que gostaria de uma vez só. Tenho que me contentar com essas insistentes repetições, com esse vaivém cíclico que me assombra sem cessar. Em uma das tentativas de voltar a ver sentido em mim mesmo, coloquei algumas metas interessantes para este ano que se inicia. Sem falta nem atraso, consta a que eu mais gostaria de realizar: descobrir, afinal, onde é que meto estas malditas fotos; saber como lidar com estas fatídicas memórias; responder, finalmente, ao meu eu desconexo, e concluir o que devo fazer de meus momentos.



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