terça-feira, 15 de junho de 2021

O fim inacabado de uma vida interminável

 Pare o que está fazendo agora. Esqueça-se dos planos que tinha para hoje à noite, e venha até mim escrever o que sente. Faça a única coisa que realmente sabe fazer, e coloque-se numa vitrine repleta de frases soltas, textos soltos, pedaços desconexos, jamais finalizados. Observe os livros de sua estante, todos com marca-páginas em posições mais ou menos intermediárias, todos eles. Note as folhas de sulfite da gaveta, um amontoado carente de conclusões. Os arquivos pela metade, as ideias nunca polidas, as sentenças sem ponto final. O oceano sem fim de fins inalcançados. Vê um padrão na incompletude de sua vida?

Há certo grau de ternura, embora questionável, na aceitação dos reveses, na percepção da fatal impiedade dos eventos. Aceitar que alguns livros, mesmo que sejam seus, não serão lidos até o fim. Que planos futuros nunca acontecerão. Que alguns objetivos jamais serão riscados da lista, seja por falta de esforço, de oportunidade, ou de tempo. Aceitar as interrupções — e as quebras — é, de um jeito tácito, celebrar aquilo que poderia ter sido, mas nunca foi. Os fins belos, aqueles que concluem arcos e fecham ciclos, aqueles que doem mas curam feridas maiores, aqueles cujos momentos anteriores são preenchidos pelas palavras certas, pelas ações certas — estes nada passam de fantasias nossas, subprodutos de mentes que ainda não aprenderam a lidar com a natureza frágil e temporária com a qual foram amaldiçoados (há, no entanto, quem dê a alcunha de bênção para isso). Pois a grande maioria dos fins, os reais, eu quero dizer, não podem ser chamados de desfechos, uma vez que nada fecham, nada concluem. São apenas momentos que foram subitamente interrompidos, mãos que nunca se tocaram, olhos que nunca se viram, histórias que ficaram por contar; vidas que ficaram por viver. Muitas vezes, um final é simplesmente um parágrafo que se esqueceu de concluir, uma frase que jamais terá fim, aliás, fim terá, só não terá fim que faça sentido, é isso que o fim é, uma frase perdida no ar, um parágrafo que se esqueceu de.

Abraçar essa ideia é olhar-se no espelho sem temor e desespero (porém igualmente despido de esperança e aspiração). É aceitar a feiura do rosto, os olhos avermelhados, demasiadamente irrigados pelos vasos sanguíneos e pela fadiga acumulada de testemunhar choros cotidianos. E, ainda assim, desviar o olhar e convidar algumas lágrimas a mais para presenciar a contemplação do espírito quebrado. Aceitar o silêncio e a solidão como se apreciam os segundos vazios entre notas melancólicas num piano solene. Com a ressalva de que o espaço que sucede uma nota tem o propósito de aguardar a próxima; há de se preparar o ouvinte para o que irá escutar a seguir. O mesmo não pode ser dito da vida, cujos silêncios e solidões não têm absolutamente nenhuma necessidade de existirem, a não ser constituir prova cabal de que o controle que supomos ter sobre nossos futuros é tão reconfortante quanto ilusório. Cedo ou tarde, aprende-se, na teoria ou na prática, do jeito fácil ou do difícil, sobre o conceito de injustiça, e sobre sua abundância natural através dos séculos. Apesar disso, teimamos em não aceitar a injustiça, a brevidade, os infinitos fins que permeiam nossos destinos. A essa teimosia particular costuma-se chamar arrependimento.

O pensamento de poder ter feito diferente. A noção de que teria sido possível escolher outro caminho, de que se poderia estar em outro lugar, em outro emprego, em outra companhia, em outra vida — não fossem as escolhas feitas no passado, que poderiam trazer desdobramentos para uma realidade alternativa que a tornaria irreconhecível, se comparada à realidade real. Não importa tanto o grau de importância dessas escolhas, pois as consequências de decisões aparentemente triviais podem ser mais misteriosas do que se imagina. Esse é, sem dúvida, o motor das angústias e dos desgostos. Uma coisa é reconhecer a irreversibilidade, outra coisa é aceitá-la. Uma coisa é saber, no âmago de seu coração, que não haverá redenção, que não haverá segunda chance (algumas pessoas não chegam a ter nem a primeira, quem dirá a segunda). Outra coisa é explicar a esse mesmo coração que não se deve aumentar o fluxo sanguíneo, que não se deve perder o ritmo dos batimentos, que não se deve agarrar-se aos sonhos a ponto de esfaquear a si mesmo. Uma coisa é convencer-se da naturalidade dos fins prematuros — há culpa, mas não há nada mais que se possa fazer a respeito. Outra coisa é aceitar as interrupções, as quebras, os fins que ceifam sorrisos inocentes, os pontos finais que nos pausam a alegria e não se recordam de devolvê-la para nós. Outra coisa é olhar-se no espelho novamente, ainda sem temor e desespero, aceitar o peso dos próprios suspiros e, na voz cansada e ainda trêmula, dizer-se: é assim mesmo.

Alguns livros jamais serão escritos até o fim. Algumas paixões jamais serão vividas. Alguns sonhos jamais serão realizados. É assim mesmo.

Consegue enxergar, agora, o padrão? Suas gavetas de meios projetos são como seus anos recheados de meias conquistas. Seus arquivos brutos e repletos de por fazeres nunca souberam como é fazer parte de um todo, e provavelmente nunca saberão — eles, assim como seus sonhos retalhados, nunca vieram a conhecer o mundo real. Pare o que está fazendo agora, esqueça-se dos planos que tinha para hoje — deixe-os incompletos, para variar — e venha até mim escrever o que sente. Faça a única coisa que realmente sabe fazer: amontoe-se em sua pilha de metades, acrescente mais um mísero fragmento de si mesmo nessa enciclopédia de episódios avulsos e despropositais que insiste em colecionar. Sonhas alto demais, caro amigo. Aceite que os planos não serão cumpridos, e os desejos não serão atendidos. Aceite que jamais poderá reparar os erros que o trouxeram até aqui, e apenas novos arrependimentos o aguardam. Aceite que seus escritos acumularão poeira nos cantos de seu quarto, até que as palavras desbotem e a chama do tempo queime as páginas que jamais puderam ver a luz do dia ou os olhos das pessoas. É assim mesmo. Seja piedoso com elas, no entanto; leia-as regularmente para si mesmo, elas precisam de pelo menos um leitor para levarem uma boa vida. Por favor, queira proporcionar-lhes uma boa vida. É tudo que lhes resta.

Os arrependimentos dos sonhadores são os epitáfios mais tristes de se ler.

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