Eu escrevi aqui pela última vez há mais ou menos um mês e meio, mas parece que foi há tanto tempo... Muito me aconteceu desde então. Depois de quase quatro anos, voltei a ter episódios de bastante ansiedade, e fazer coisas simples que não me eram nenhum esforço agora pareciam tarefas bem árduas. Pouco consegui fazer de minhas semanas, senti-me tão sozinho quanto há três anos, alguns meses antes de começar este próprio blog. Uma das poucas coisas que ainda me divertia eram os jogos, e eu estava para jogar um que tinha dividido com meu amigo Murilo uns meses atrás. Foi o que fiz. Devo dizer, depois de setenta horas jogadas, que Death Stranding foi um dos melhores jogos que joguei nos últimos tempos, não apenas pelo jogo em si, mas também por ter me servido como maior companhia nessa época de incertezas, medos e solidão por que passo. Justamente por isso, apesar de o jogo ser muito bom em vários aspectos, eu decidi focar nos principais que me cativaram: a narrativa solitária e a ambientação melancólica (mas não tanto assim). Já aviso, como o jogo é de 2019 e eu quero muito falar em detalhes, tem spoiler por toda a parte.
Ingredientes incluem literatura, opinião, computação, poesia, música. Pode conter traços de política e outros intensificadores de sabor. Alérgenos: contém verdade e sentimentalismo.
segunda-feira, 31 de maio de 2021
A solidão partilhada de Death Stranding
Antes de tudo, é importante dar o devido contexto. Pode-se dizer que a história se passa num mundo pós-apocalíptico, onde o mundo — e, em particular, os Estados Unidos — foi afetado por um fenômeno chamado Death Stranding, que, embora seus detalhes ainda não sejam compreendidos, foi o responsável por misturar o mundo dos vivos com o dos mortos. Mesmo a premissa sendo comum (e mesmo com o Norman Reedus na pele de Sam Porter Bridges, o protagonista), não pense em zumbis. Hideo Kojima, idealizador do jogo e muito aclamado pela franquia Metal Gear, apostou em um conceito diferente. Não são pessoas agressivas e animalescas tomadas por um vírus, mas sim criaturas invisíveis — BTs, como são chamados — que simplesmente vagueiam pelo mundo, agora retomado pela natureza, com exceção dos pequenos centros urbanos e abrigos. Além disso, o Stranding também alterou fenômenos naturais como a chuva (chamada de timefall), que acelera a passagem do tempo para aquilo que toca.
É nesse ambiente desolado que conhecemos Sam, que ganha a vida como entregador freelancer. Uma vez que o Death Stranding fez com que as pessoas ficassem isoladas em seus abrigos, e com que os caminhos entre elas ficassem bloqueados pela chuva e pelos BTs, a profissão de "carteiro" ficou muito mais requisitada, embora mais perigosa, provendo recursos básicos a quem precisa. Em um de seus trabalhos que acaba dando errado, Sam reencontra sua mãe adotiva, Bridget, que também é a presidente da UCA (o que restou dos EUA), em estado terminal de saúde. Logo antes de morrer, Bridget pede a Sam que retorne à Bridges, uma companhia de entregas associada ao governo, e realize seu desejo de reconstruir o país. Sam então é incumbido de cremar o corpo de sua mãe, e também o de BB-28, por ter se envolvido no incidente de seu trabalho fracassado. BB-28 é um dos vários Bridge Babies, que são basicamente bebês colocados em uma espécie de útero artificial e conectados aos seus usuários. Os BBs são ferramentas que auxiliam aqueles com DOOMS (digamos que seria um equivalente ao conceito de "sensibilidade espiritual") a sentirem os BTs, e até mesmo os enxergarem. Sam se recusa a cremar BB-28 e em vez disso o leva como seu próprio BB.
Ao retornar para a cidade após a cremação, Sam recebe uma mensagem de sua irmã adotiva Amelie, que alega estar sendo feita refém por um grupo terrorista anti-unificação em Edge Knot City, no extremo oeste do país. Ela pede que Sam faça a mesma expedição ao oeste que ela conduziu no passado e conecte as cidades e abrigos no caminho em uma mesma rede de informações, assim reconstruindo a nação. Ao fim de sua jornada, ambos poderão retornar e Amelie substituiria sua mãe como presidente. Relutante, Sam aceita a missão.
Como já é de se imaginar pela sinopse que escrevi, o jogador passa a maior parte do tempo caminhando por aí com encomendas nas costas, e no mais profundo silêncio, quebrado somente pelos assobios do vento, ora fortes, ora fracos, pelo correr dos rios, pelo cair da chuva, e assim por diante. Você está sozinho, e precisa atravessar um país. Se tem uma coisa que esse jogo soube fazer foi passar essa mensagem. Por mais irônico que possa parecer, andar pelo ambiente natural e pela vastidão das paisagens é uma experiência incrivelmente introspectiva. Some a isso algumas mecânicas simples, como a de urinar (sim) e de se sentar no chão para descansar os ombros ou tirar um cochilo, e você logo se verá imerso num mundo que quase parece interior. O antes ignorado vaivém da respiração agora é perceptível, agora causa algum efeito consciente. Não foi por acaso que Death Stranding foi um dos poucos jogos — e poucas coisas, de modo geral — que me trouxeram um pouco mais de calma e paz para os meus dias; eu via em Sam alguém que se sentia tão solitário, tão perdido num lugar tão grande e silencioso quanto eu, mesmo que nossas ausências fossem de naturezas distintas. Mas nem tanto assim. Ele havia perdido sua esposa e filhos, daí o porquê de sua aversão a ser tocado por outros e da vontade de permanecer sozinho.
Muitas vezes não existe caminho fácil até o seu destino. Rios largos, montanhas íngremes, chuva torrencial — em vários momentos, essas são as únicas opções. Pode ser demorado e, a depender da dificuldade selecionada, bastante trabalhoso, mas a vida de entregador tem dessas. Apesar de caminhar no meio de um campo cheio de BTs ser bastante tenso, especialmente no início, o jogo não chega a ser de terror, a menos que seus medos sejam muito específicos. Por outro lado, a atmosfera pode afetar intensamente um jogador bem imerso, o que foi o meu caso.
Entretanto, existem pontos durante a história em que outro tipo de som preenche o silêncio da peregrinação. Nesses momentos, o volume da natureza é educadamente abaixado e uma música começa a reverberar pelas paredes inexistentes dos campos abertos. Então, você se vê atravessando um extenso gramado, ou descendo uma enorme montanha após passar por chuva e neve, enquanto acordes leves de piano aliviam um pouco o peso em suas costas e vozes suaves massageiam seus pés calejados e doloridos. Na minha opinião, esses são de longe os minutos mais catárticos de Death Stranding. Perdi as contas de quantas vezes eu deixei minha moto ou meu carro no meio do nada, apenas para prosseguir a pé, permitindo que a música perdure mais um pouquinho nos meus ouvidos — afinal, são raros os presentes que a vida nos dá enquanto vagamos na esperança de alcançar um objetivo que nos parece nunca se aproximar de nossas mãos pedintes. A trilha sonora do jogo é simplesmente impecável, não poderia combinar mais com todo o universo. Tanto que eu as escuto sem parar desde ouvi-las pela primeira vez, inclusive agora para escrever. Minhas favoritas até o momento são Bones e Don't Be so Serious, da banda Low Roar, e a incrível Asylums for the Feeling, de Silent Poets, mais conhecida como a música do trailer (mas não se preocupe, ela também aparece no jogo). É engraçado como simplesmente andar por uma montanha escutando uma música pôde me acalmar tanto.
Embora tudo que eu falei aqui até agora descreva Death Stranding como um singleplayer sobre um lobo solitário numa jornada impossível, o diferencial do jogo está em seu "multiplayer" — com devidas aspas. O fato é que, se você joga conectado à internet, na verdade você está jogando em um servidor com muitos outros jogadores. Mesmo que você esteja desbravando o mundo por conta própria, ao conectar uma cidade ou abrigo à rede já mencionada, você tem acesso a estruturas construídas por outros jogadores naquela região. De simples escadas e cordas de escalada até geradores de eletricidade e abrigos de chuva, os jogadores interagem entre si por meio de uma estranha cooperação, em que ninguém se vê, mas todos se percebem. Ao tentar passar por um rio, talvez você se depare com a ponte feita por outra pessoa; antes de sair para um lugar distante, você pode usar o veículo de outro jogador. Alguns deles podem até entregar suas encomendas perdidas por você. Eu nem acho que exista uma pressão para retribuir — pela própria natureza do jogo, você se verá ajudando os outros de algum jeito, seja colocando um aviso de tempo ruim, seja consertando a construção de alguém.
Esse curioso paradoxo entre a solidão e a companhia talvez seja o que faz Death Stranding ser especial para mim e para muitas pessoas. O jogo reforça um sentimento que pode ser claro para nós, mas sobre o qual raramente paramos para pensar: o de que cada um de nós está sozinho em si mesmo. Alguns mais do que outros, certamente. Porém, saber da solidão do outro estranhamente traz um pouco de paz para nós mesmos; uma vaga sensação de que mais alguém está ali com você, ainda que fisicamente distante. De certo modo, quando sabemos que estamos todos andando desacompanhados, nos sentimos mais próximos. Isso reforça ainda mais a mensagem central de todo o jogo: fazer conexões e unir os que antes estavam divididos; lembrar que, em algum momento e em algum lugar, alguém está pensando em você e, do mesmo modo, você estará pensando em alguém. Não é necessariamente amizade. Mas só o pensamento de que você não está sozinho pode ser uma grande, senão a única ajuda nas horas difíceis — tanto literalmente quanto metaforicamente; tanto no jogo como fora dele.
Eu não poderia escrever este texto sem falar mais a fundo do BB-28. Enquanto a presença de outros jogadores é puramente indireta, você tem um companheiro muito mais próximo acoplado ao seu peito. Durante o jogo, é dito com frequência que os BBs são só equipamentos para auxiliar os entregadores, e que, com o devido tempo de uso, são descartados — cremados, devo lembrar — por não terem mais utilidade ou apresentarem defeito (não detectarem direito os BTs, por exemplo). Mas não demora muito para Sam, e também para o próprio jogador, se apegar emocionalmente ao seu BB e querer protegê-lo. Devo dizer que o fato de Death Stranding me fazer simpatizar com a situação de Sam foi inesperado, já que eu não sou muito adepto da ideia de ter filhos nem tenho muito sentimentalismo em relação à paternidade. Na verdade, acho que, porque ele não era realmente filho de Sam, eu consegui me pôr numa posição mais distante, não sei. De todo jeito, a conexão entre os dois se torna mais forte a cada viagem que fazem juntos, até que o código BB-28 é substituído por um nome. "Lou": o nome que Sam teria dado ao filho, se ele não tivesse morrido antes de nascer.
Contudo, toda vez que os dois se conectam, Sam vivencia memórias estranhas, como se ele mesmo estivesse dentro da cápsula, vendo o mundo através dos olhos de BB. Nesses flashbacks, há sempre um homem (interpretado pelo talentoso Mads Mikkelsen), que tenta levá-lo consigo. No meio do jogo, somos abordados pelo que parece ser o seu espírito — ou o equivalente a isso no universo de Death Stranding — que alega ter tido seu BB roubado e faz de tudo para tê-lo de volta, raptando Sam e Lou para uma dimensão diferente, onde cenários das guerras mundiais são encenados repetidamente, e o tal homem está lá, procurando pelo que é seu. Esses momentos são esporádicos, mas sempre são bastante reveladores sobre quem realmente é BB-28, e mais importante que isso, quem é essa figura dos flashbacks que tanto o busca. Pelo menos em mim, isso também começou a me colocar em um certo dilema; mesmo apegado a Lou, o que eu deveria fazer se ele realmente fosse de outra pessoa? Por que o meu afeto deveria ser mais válido do que o afeto de outra pessoa? Essas perguntas ficam sem resposta, assim como detalhes-chave da história que estão faltando, até os últimos capítulos do jogo. E sim, eu vou dar todos os spoilers porque preciso falar disso.
Após resolver todo o arco com Amelie (fica por sua conta descobrir o que acontece, só jogando), Sam percebe que Lou não está mais respondendo aos seus chamados e não está reagindo a nada. Então, é atribuída a ele uma última entrega: ir até o incinerador e cremar o corpo de BB. Isso acontece depois de todas as coisas importantes do jogo, então você não tem mais nenhuma encomenda, nenhuma preocupação. É apenas você... e um bebê morto numa cápsula. Essa foi a cena mais emotiva pra mim, mesmo com a minha ressalva paternal. Já perto do incinerador, Sam conecta-se com Lou outra vez mais e revive pela última vez aquelas memórias, mas dessa vez por completo. Afinal de contas, não era de BB-28 que o homem estava atrás, pois aquelas lembranças não eram dele, e sim do próprio Sam. Aquele era seu pai, que havia sido assassinado muito tempo atrás por Bridget, que o criou como se fosse seu próprio filho.
Eu estou pulando muitos detalhes aqui, mas é porque não é minha intenção descrever todos os acontecimentos. O capítulo final é espetacular justamente porque é o momento no qual Sam descobre sua verdadeira identidade — aquilo que sempre supôs nunca existir. Um homem sem família, sem passado definido, sozinho, cujas ações só tinham como propósito a sua sobrevivência. Agora, ele sabia quem era, e qual era havia sido sua real história. Mas ainda faltava uma coisa: faltava um motivo pelo qual viver. E, para ele, era Lou, que agora flutuava sem vida em sua cápsula. Cabia a Sam queimar suas próprias esperanças.
Num momento de desespero, ele quebra a cápsula e tenta várias vezes reanimar BB, sem sucesso. Outra vez, ele estava sozinho, sem nada. "Tudo que eu toco, eu perco", ele havia dito em uma cena anterior. O mundo, ou melhor, uma pequena parte dele, estava muito melhor agora. Todos conectados uns aos outros, graças aos esforços monumentais de Sam para reconstruir o país. Tudo estava bem. Menos ele. Que mudança positiva havia ele tido com tudo aquilo? É enquanto ele lamenta mais uma das muitas perdas de sua vida solitária que Lou finalmente acorda, chorando. Sam então decide desconectar-se da rede nacional e viver sua vida sozinho com sua filha — seu nome completo, revelado na cena pós-créditos, é Louise.
A seção anterior foi bem expositiva, mas eu quis construir a cena para ilustrar o que quero dizer aqui com este texto e que reitero nesta conclusão. A experiência de sentir-se só, num mundo que lhe é quase sempre hostil. E, no entanto, ser relembrado, de vez em quando, de que há mais alguém em algum canto desse vasto universo. É enquanto se espera a chuva passar embaixo de um abrigo feito por outra pessoa, assobiando uma canção de ninar para o seu BB dormir, que se nota que estamos ligados de formas que nem mesmo podemos imaginar. Ficaríamos por anos traçando relações se quiséssemos descobrir que caminhos nos levaram até alguém, ou simplesmente a algo pertencente a essa pessoa. É impossível dizer com certeza o que fez com que duas vidas se cruzassem — igualmente o é prever o que se passará no futuro, se aquelas trajetórias acompanharão uma à outra, se voltarão a se cruzar, ou se jamais se verão outra vez. E, mesmo que reste apenas a nossa própria trajetória, mesmo que andemos sozinhos no fim do dia, a lembrança daqueles caminhos que um dia tocamos com os pés cansados e nos quais deixamos nossas duras pegadas pode nos fazer um pouco menos solitários — talvez não muito, mas pelo menos o suficiente para nos fazer seguir caminhando.
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