sábado, 13 de março de 2021

Pós-créditos #4 — Clímax

Parece que o espírito de crítico realmente voltou; além dos livros, agora também os filmes voltam a ser tema de escrita aqui no blog (já faz quase um ano desde a última vez, na qual falei do incrível indie Faults). O hiato se quebrou por um motivo muito simples: assistir a este filme foi uma experiência inesquecível, no sentido mais literal da palavra e não necessariamente com conotações secundárias sobre sua qualidade. Um filme que vi há menos de doze horas e já vim correndo para cá falar sobre ele.


Clímax



Ficha técnica

Ano: 2018
Gênero: Terror, Drama, Musical
Direção: Gaspar Noé
Duração: 97 min (1h37)

Sinopse

Um grupo de jovens dançarinos se reúne em um ginásio escolar vazio e remoto para ensaiar sua coreografia em uma fria noite de inverno. A festa, que perdura a noite toda, logo se transforma em um pesadelo alucinante ao descobrirem que a sangria estava batizada com LSD. 

Crítica (sem spoilers)

Nota: 9/10

Eu, assim como meus amigos, sou da teoria de que filmes têm seus momentos ideais para serem assistidos. É muito legal quando a atmosfera que uma obra tenta passar combina, de certo modo, com o que está acontecendo no mundo real. Por exemplo, meu filme favorito, De Volta Para o Futuro, é bem característico de uma tarde ou até mesmo de uma noite descontraída. Essencialmente, quando as pessoas estão num humor mais leve e de diversão. Por outro lado, filmes com narrativas intrigantes e cheios de suspense, como Memórias de um Assassino (do mesmo diretor de Parasita, aliás), talvez sejam melhor apreciados quando se está mais concentrado e interessado em uma história mais elaborada. Tendo dito isso, eu não acho que poderia ter visto Clímax de um jeito melhor — de madrugada com esses mesmos amigos de quem falei.

Há muitos adjetivos para descrever essa hora e meia que passei ontem à noite. Mas, se eu pudesse escolher dois que melhor expressassem o que acho do filme, seriam autoral e sensorial. Vamos por partes. Primeiro, Gaspar Noé é um diretor muito autêntico, que não tem medo de nada, no que se refere a empregar técnicas ou abordar temas em seus filmes. Ele é muito conhecido por sua voz polêmica e provocadora. Por mais que este seja meu primeiro longa do diretor, acho razoável afirmar que seu acervo de obras costuma atravessar assuntos bem "carnais", eu diria. Acredito que ele explora a essência mais inconsciente e visceral do ser humano, o instinto animalesco que reside em todos nós, mas que permanece suprimido durante a vida pelas convenções sociais de comportamento e boa convivência. Neste filme, pelo menos, foi exatamente o que ele fez.

Noé coloca num mesmo espaço pessoas que compartilham uma característica, a profissão de dançarino, mas que têm, cada uma, personalidades, pensamentos e atitudes que podem divergir bastante entre si. A propósito, um rápido parêntesis nessa digressão para falar que as coreografias aqui são fantásticas, o fato de os atores serem realmente profissionais da dança contribuiu muito para isso. Enfim, essa união de diferentes pessoas é, ao meu ver, o que mais contribui para a qualidade do desenvolvimento da trama, e também deve ter sido, eu imagino, a parte mais elaborada e trabalhosa do roteiro.

Tecnicamente falando, o diretor dispõe e se utiliza de um vasto arsenal de atributos que conferem ao filme o seu caráter único e louco. Claro, com uma sinopse como essa, é de se esperar que as cores sejam bem vivas e saturadas, mas isso é algo que se pode encontrar em diversos outros filmes e não necessariamente dá um ar de originalidade, ao menos por si só (os originais Netflix que o digam, com suas paletas demasiado explícitas mas enredos sem tempero algum). Em Clímax, por outro lado, as cores se somam com planos-sequência altamente estendidos, além de escolhas de ângulos totalmente inconvencionais e enquadramentos bizarros. É com esse conjunto da obra que Gaspar Noé realmente brilha, e é o que de fato assina o filme por ele; qualquer um que o conhecesse minimamente veria no longa o seu dedo atiçante e alucinógeno.

A trilha sonora adicionou ainda outra camada à experiência do filme, com músicas próprias de festas como a retratada aqui (um alô especial para um dos meus artistas dos tempos recentes, Aphex Twin. Vão ouvir, é muito bom). A sonoridade, que, na ocasião e com o passar do tempo, é apenas um som ambiente e barulho de fundo, caminha com os personagens e com o espectador, e com eles evolui. E, bem como acontece de verdade, é justamente quando a música desaparece que nos damos conta que ela sempre esteve ali, e o que antes era silêncio agora se torna um som, para se dizer o mínimo, inquietante.

Devo acrescentar que não acho seguro, sob nenhuma circunstância, assistir a este filme sob a influência de qualquer substância que altere o psicológico. Exceto o álcool, mas isso provavelmente só vai te dar uma dor de cabeça enjoada depois. O simples fato de ver o filme já foi capaz de mexer um pouco com a minha sobriedade, o que foi uma primeira vez para mim. É nesse sentido que caracterizo Clímax como sensorial, e não acho que há ninguém que discorde de mim nisso. Do início ao fim, tudo é arquitetado e planejado para arrancar do leitor alguma reação fisiológica. Não diria emocional, exatamente, apesar de terem claros momentos em que isso pode acontecer. Eu diria mesmo fisiológica porque foi justamente isso que senti, como se aquelas imagens passassem direto pelo meu senso de emoção e fossem direto para um local do cérebro cuja reação é muito mais instintiva e irracional, como se aquilo visto pelos meus olhos não tivesse nem como ser racionalizado e processado direito. Não são cenas sobre as quais se reflete e posteriormente são respondidas com determinada emoção; pelo contrário, são cenas que, via de regra, são apresentadas e sentidas cruas, sem conversa com o intermediador da compreensão.

 Crítica (com spoilers)

Acho que os melhores filmes antidrogas, se é que podemos assim chamá-los, não são aqueles em que elas são combatidas e proibidas, mas sim aqueles em que ela é usada de forma aberta e corriqueira. Eu não digo isso por achar que é essa a mensagem que o diretor tenta passar. Não há no filme nenhum julgamento moral dos eventos, muito embora a grande maioria deles seja passível disso. Por mais que a loucura tenha se instaurado no local e nas pessoas, e por mais que o tom predominante seja sombrio e pessimista, eu não diria que o filme se propõe a passar uma lição nesse sentido. Inclusive, o fato de ele ter sido baseado numa história real me leva ainda mais a crer que o que vemos é apenas um relato, um registro do que se passou com aquelas pessoas — com a visão pessoal do diretor, é claro, ninguém poderia saber com tantos detalhes o que aconteceu ali. Toda a "carga" moral, por assim dizer, fica a critério do espectador. E eu gosto disso. Não é uma obra paternalista, que nos atribui uma opinião, mas sim uma exposição do real como ele de fato é, e o que pensar dele é problema exclusivamente nosso.

Quando digo que o filme é único, é porque ele trouxe uma coisa que jamais tinha visto igual: a representação fiel de uma bad trip (quando seu corpo responde de forma negativa a alucinógenos, por exemplo). Geralmente se veem descrições e retratos mais caricatos dessa situação. Depende-se muito do visual, das alucinações mirabolantes e exageradas, e acaba-se por dissociar o indivíduo da experiência, ou seja, a "viagem" parece estar separada do "viajante", e a relação entre os dois — o que no fim das contas é o mais importante — é deixada de lado ou fica em segundo plano. Entretanto, por estarmos vendo Clímax de uma perspectiva sóbria e observadora, isto é, sem estarmos no lugar do personagem, mas observando-o, a realidade fica muito mais fidedigna, o que, ironicamente, vem a ser até melhor do que a outra abordagem que falei.

Acompanhar a jornada de Selva, uma das dançarinas, enquanto ela descobre que está drogada e se esforça para manter um mínimo de sanidade é, sem dúvida, agonizante. As câmeras estranhas e cores atordoantes de Gaspar Noé nos arrastam por corredores estreitos que parecem se apertar ainda mais, luzes tremeluzentes esquizofrênicas, cantos sujos do recinto onde a respiração fica ofegante e desesperadora... Mesmo de um ponto de vista externo à loucura, inevitavelmente nos pomos no lugar de Selva e dos demais personagens, e não podemos evitar sentir a sua agonia e nos exasperar na busca por compreender o que está acontecendo. 

Não é um filme fácil, nem leve. Muita merda acontece. Pessoas se machucam, pessoas morrem. Até o filho de uma das mulheres acaba por acidentalmente tomar um pouco da sangria batizada e é trancado por sua mãe num pequeno quarto com o disjuntor do local, para que ele fique seguro e longe dos outros. Mais tarde, é claro, a mãe não faz ideia de onde colocou a chave, a criança começa a alucinar sozinha naquele ambiente hostil e confinado e morre eletrocutada ao mexer no controle de energia do ginásio. Ao perceber que a luz do lugar foi substituída pelas luzes de emergência, a mãe fica em prantos ao perceber que matou o próprio filho e, drogada e desesperada como está, comete suicídio.

Esse é só um dos vários exemplos que posso citar, e não vou nem falar da humilhação da dançarina grávida, porque isso me incomodou mais do que a minha tolerância permitia, e falar disso não é uma coisa que eu estou a fim de fazer no momento. Ainda assim, continuo sem encarar o filme julgando as ações dos personagens, mas apenas mostrando o enorme efeito dominó que a sangria desencadeou. Quando se está nessas condições, é muito fácil as coisas se tornaram uma bola de neve que cresce exponencialmente, e retomar o controle de si mesmo pode ser uma tarefa muito complicada.

Como falei antes, o filme traz várias pessoas diferentes com suas próprias características e opiniões. Por isso, como era de se esperar, quando percebem que havia alguma coisa errada na bebida, cada um dos dançarinos tem uma reação diferente, tanto à notícia quanto à droga. Alguns se tornam ninfomaníacos, outros extremamente violentos, outros totalmente alheios aos demais, enfim, tem de tudo ali, as coisas mais esquisitas que você pode imaginar. Depois de conversar com meus amigos, eu acredito que, além de retratar o que aconteceu ali, a premissa da narrativa também se torna um pretexto para trazer uma discussão maior à tona. Como se comporta o ser humano livre das amarras sociais? Naquela festa ninguém se importa com nada, já que todos (ou a maioria) estão num estado em que nem conseguem pensar direito. Consequentemente, os instintos emergem, os desejos afloram, e não há aparentemente nada que os impeça de agir sobre eles, sem ressalvas, sem constrangimento. Clímax é uma jornada noturna que acompanha o desabrochar dessas vontades primitivas e o desenrolar das consequências da prática irrestrita dessas vontades. Como o próprio Gaspar Noé diz em uma de suas frases que interrompem o filme, "viver é uma impossibilidade coletiva". Acho que é isso mesmo. Viver, no sentido de experimentar coisas de modo pleno, tem um obstáculo natural, a sociedade. Pois viver em sociedade também significa viver em restrições. O filme mostra um ecossistema no qual essas restrições estão enfraquecidas ou mesmo inexistentes. Em alguns pontos, me lembrou os filósofos que falavam sobre o estado natural do homem. Caótico, carente de razões e propósitos, e muito promíscuo.

Esse é realmente um filme para se ver de madrugada, não tem outro jeito. É preciso mergulhar nos delírios, é preciso imergir na loucura coletiva e nas músicas entorpecentes e nas luzes caleidoscópicas. É preciso enlouquecer-se junto. Por sinal, é o que acontece na maioria dos filmes sensoriais, eles precisam de bastante dedicação por parte do espectador no sentido de permitir-se conectar com a obra. Não sei se ver sozinho seria a melhor opção. Ver chapado ou coisa parecida definitivamente não me parece a melhor opção. E, se vocês me permitirem um único julgamento moral nesta crítica, caso você vá usar alguma coisa, tenha certeza de que você está em condições seguras e que nada de mau pode te acontecer. Um lugar confortável, com pessoas de muita confiança, sempre. Se você considera isso um exagero de minha parte, está mais do que convidado a abrir a Netflix e assistir a Clímax.

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