quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Posfácio #5 — Matadouro-Cinco

 Estive ausente das resenhas literárias por um bom tempo, mas hoje retorno com uma verdadeira bomba (quase literalmente). Há muito o que se dizer hoje, então vamos falar de um dos livros que mais me matou por dentro. É assim mesmo.

Matadouro-Cinco ou A Cruzada das Crianças: Uma Dança Compulsória com a Morte



Autor: Kurt Vonnegut, Jr.
Ano: 1969
Gênero: Ficção científica, ficção histórica, novela de guerra

Sinopse

Eleito pela Modern Library como um dos 100 melhores romances de todos os tempos, Matadouro-Cinco, um clássico americano, é um dos grandes livros antiguerra do mundo. Centrado no infame bombardeio da cidade alemã de Dresden, a odisseia de Billy Pilgrim através de suas viagens no tempo reflete a jornada mítica de nossas próprias vidas fraturadas enquanto buscamos um significado naquilo em que mais tememos. [Traduzido da sinopse da edição em inglês].

Crítica

Já aviso de antemão, não vai ter como falar sobre esse livro sem uma tonelada de spoilers, nem vou me forçar a evitá-los. Mas não se preocupe, eu vou avisar quando eu achar que estou começando a invadir a experiência individual do leitor — embora eu particularmente prefira me abster de ler qualquer coisa sobre um livro antes de lê-lo, por isso pulei até o prefácio desta edição.

O estilo episódico de Kurt Vonnegut

Penso eu que os grandes autores que esse mundo já viu têm pelo menos uma característica em comum: todos eles trazem obras que chacoalham a literatura, dão uma boa repaginada, mostram novos ângulos, novas perspectivas, novos jeitos de olhar para uma arte que se estende há milhares de anos. Muitas vezes, o estilo literário é essa potente ferramenta. E o estilo de Vonnegut, assim como falei em minha resenha de O Homem Duplicado, confere a Matadouro-Cinco uma voz narrativa original e inconfundível, cheia de personalidade. Quer você goste dela ou não, isso não se pode negar. Por ser meu primeiro livro do autor, não sei dizer se isso é recorrente em seus outros trabalhos, mas definitivamente bastaram pouco mais de duzentas páginas para eu me apaixonar por esse novo timbre.

Kurt Vonnegut, Jr.

Matadouro-Cinco é escrito em trechos curtos, episódicos e às vezes muito específicos sobre o protagonista, Billy Pilgrim, e diferentes pontos no tempo de sua vida. Não existe linearidade, pelo menos não no conceito tradicional, e os trechos não necessariamente têm uma relação direta com seus vizinhos. Os capítulos são conjuntos desses trechos, e eu pessoalmente acho que a ideia foi excelente. Sim, nada é muito claro nesse estilo de narrativa, mas essa é justamente a intenção. O propósito de cada capítulo não é apenas ser parte de uma história maior — ou ainda contar uma sub-história dentro de si —, mas é, principalmente, o de criar uma ambientação. Cada capítulo é uma olhada na mente de Billy, e em que lugar (e em que momento) ela se encontra. Eu estou para ver um livro introspectivo que use a estrutura narrativa a favor da personalidade do protagonista tão bem quanto Kurt fez. E assim acaba a seção sem spoilers desta resenha.

O caos e a loucura

Para ser franco, tudo que eu posso sentir por Kurt Vonnegut é um respeito absoluto. Ele, assim como Pilgrim, esteve na Segunda Guerra, foi prisioneiro dos alemães e testemunhou em primeira mão o bombardeio de uma cidade inteira — um bombardeio que foi feito, inclusive, pelos próprios Aliados, lado pelo qual ele supostamente estaria lutando. Passar pelo que ele passou e ainda ser capaz de redigir um livro inteiro sobre o acontecido ainda é uma coisa que não entra direito na minha cabeça. Ler este livro é afogar-se em incredulidade, terror e tristeza. É claro que o estilo esquizofrênico e vago da história não é meramente estético: ali é, também, o trauma de Billy (e de Kurt) falando. Ontem registrei Matadouro-Cinco num livro de marcar livros que tenho, sob a seção "livros que me emocionaram", e acredito que a justificativa que ali escrevi resume bastante meus sentimentos e pensamentos sobre a obra. Eu escrevi: "É o retrato mais cruelmente vívido e realista de um espírito quebrado". Eu tinha pouco espaço, então tive de ser breve, mas é exatamente isso. Por mais que haja elementos fictícios durante a história, como o escritor e amigo de Billy Pilgrim, Kilgore Trout, e os aliens do planeta Tralfamadore (já já chegaremos a eles), o realismo de Vonnegut é brutal. É a única palavra que me vem a cabeça. Brutal.

As reações dos personagens, os gatilhos emocionais e os mecanismos automáticos de defesa, não somente do protagonista, mas também de coadjuvantes que aparecem aqui e acolá são desconfortavelmente vivazes, e o livro não mede esforços para pressionar a ferida. Porque, no fim das contas, a vida também não mediu esforços para pressionar a ferida. É fácil se perder no jeito caótico com que se conta a história de Billy, mas em todo capítulo sempre nos deparamos com um lembrete muito óbvio, que aliás é a frase de abertura do livro: tudo aquilo aconteceu. Todas aquelas atrocidades foram cometidas. A Segunda Guerra aconteceu. O bombardeio de Dresden aconteceu. Milhares de pessoas morreram. É assim mesmo.

Admito que qualquer obra que fale de guerras de modo geral costuma me emocionar mais do que o de costume. Desnecessário dizer que existem várias boas razões para isso. Matadouro-Cinco é a antítese da linha de filmes e livros hollywoodianos que retratam batalhas e conflitos com um heroísmo nacionalista estúpido, se me permite dizer. Não há qualquer romantização dos soldados nem de suas ações, seja de qualquer lado que seja. Nada disso. Kurt Vonnegut faz uma autópsia da guerra, abre suas tripas e mostra como ela realmente é — um oceano de rostos pálidos e desesperançosos se debruçando em um amontoado infindável de dor, sofrimento, traumas permanentes e mortes. É assim mesmo.

Se eu tivesse que escolher um equivalente cinematográfico à sensação que foi ler este livro, com certeza absoluta seria o filme soviético Come and See, de 1985. Também antiguerra, o filme acompanha o jovem bielorrusso Florya, que entra para um movimento de resistência local, que luta contra a ocupação nazista nas vilas do país. Este não é um filme fraco, assista por sua própria conta e risco, mas definitivamente é uma das produções mais viscerais que já foram feitas sobre a guerra. As palavras de Vonnegut não ficam para trás neste quesito.

Viagens no tempo, Tralfamadore, e assim por diante

A pitada de ficção científica de Matadouro-Cinco vem, é claro, das viagens no tempo de Billy Pilgrim pelos momentos de sua vida. Em um trecho, ele está na guerra com seus vinte anos, e logo no trecho seguinte ele é um oftalmologista quarentão. Porém, o protagonista também interage com alienígenas de outro planeta, os tralfamadorianos. Lá, ele tem contato com uma espécie diferente, o que causa um choque de interpretação da vida e de seus desdobramentos. Billy aprende a olhar para o tempo e para os momentos de outra maneira, considerando que todos os momentos da vida de uma pessoa sempre existiram e sempre existirão em algum ponto no tempo. Sendo assim, a ideia de livre-arbítrio perde sentido, e tudo acontece porque deve acontecer. Essa visão determinística, assim como as ideias apresentadas pelos alienígenas, é a grande responsável por dar a Billy seu lado sarcástico e cínico, e ao livro sua irreverência e seu jeito confuso. Os tralfamadorianos enxergam todos os momentos ao mesmo tempo, por isso sua literatura é feita como um compilado de diferentes eventos que evocam diferentes sensações, para que ele seja consumido inteiramente de uma vez. Kurt, como bem fala na folha de rosto, adota o mesmo estilo.

Mais uma vez, os aspectos fictícios servem como válvulas de escape para o transtorno de estresse pós-traumático do protagonista, e tudo é estruturado de uma maneira linda e triste ao mesmo tempo. Uma tragédia após a outra, e Billy viaja no tempo para outro momento, preferencialmente um no qual ele não esteja tão fodido quanto no presente — aliás, o que é realmente o presente para Billy Pilgrim? Apesar de tudo isso, é possível, sim, criar uma certa linha do tempo entre o jovem soldado que vagava, desistente, com companheiros que mais tarde morreriam, até o prisioneiro que habitava um matadouro até este ser reduzido a cinzas, juntamente com pessoas, que também seriam reduzidas a cinzas. É assim mesmo.

Falando nisso, quero ressaltar uma parte específica do capítulo 8, na qual ele descreve o que aconteceu um pouco antes e durante o bombardeio de Dresden. Geralmente, Kurt usa a viagem no tempo para passar de uma memória para outra. No entanto, este é o único momento em todo o livro no qual Billy Pilgrim não viaja no tempo até o bombardeio, mas recorda-se dele de modo convencional. O impacto desse simples detalhe é enorme. Eu mal consigo colocar em palavras, mas é como se esse fosse o único momento impossível de escapar para Billy. O modo como ele é lembrado disso, a partir de uma música que tocava em seu aniversário de casamento, é de partir o coração. Além de tudo, quando finalmente chegamos ao clímax do livro, a parte que vinha sendo antecipada desde vários capítulos atrás... há apenas a descrição precisa do que aconteceu e ponto final. Nenhum grito, nenhuma lamentação, nenhuma emoção. Estava tudo bem. Bombas caíram. Pessoas morreram. É assim mesmo.

Tudo isso só enfatiza o estado exausto e genuinamente indiferente de seu protagonista e dele mesmo em relação a tudo que lhe acontecia. Desde cedo, somos apresentados a um rapaz que já não tem o desejo de continuar vivendo. Os olhos de Billy já haviam visto tanta coisa que algumas bombas e alguns cadáveres eram só mais uma linha a se acrescentar no relatório final, nada demais. Já não se tratava mais de uma luta pela sobrevivência, mas apenas um viver porque ainda não era o dia de morrer. O dia em que Billy Pilgrim morreria já estava determinado em algum ponto do futuro que sempre existiu. E, quando isso acontecesse, estaria tudo bem, como sempre esteve. Quando se está no inferno, incêndios e torturas não passam de manchetes dos jornais que se leem no café-da-manhã. Anestesiado pela crueldade da guerra, não há nada o que fazer a não ser continuar.

É assim mesmo.

Para mim, a melhor parte do livro são os bordões e como eles são usados, simplesmente porque, ironicamente, são as palavras que mais dizem sobre o protagonista. A necessidade de usar a mesma expressão várias e várias vezes adiciona uma característica única à narração, ao ponto de o leitor ser capaz de prever quando virá a próxima vez. Além disso, Kurt Vonnegut tem um humor bem peculiar e que talvez não agrade a todos, e às vezes subverte a expectativa de todos ao usar seus bordões, usualmente associados a situações horríveis, em ocasiões muito bobas. Além do "E assim por diante" e de sempre se referir a personagens da mesma exata maneira, a exemplo de "o velho Edgar Derby, coitado", há de se destacar o mais importante e o mais presente de todos: É assim mesmo.

Essas três palavras (que também são três no original, "So it goes.") transmitem a condensação máxima da personalidade de Billy Pilgrim e de sua atitude. Como você viu na minha metalinguagem nesta própria resenha, o autor sempre escreve essa curta frase logo após mencionar a morte de alguém, seja quem for, ou quando fala de morte num sentido mais geral. Além de ilustrar novamente as cicatrizes deixadas pelas experiências que viveu, essa resposta pronta e aparentemente pré-programada do protagonista tem raízes bem mais profundas e está associada com um dos grandes temas do livro como um todo: a filosofia tralfamadoriana. A morte é um evento insignificante do ponto de vista dos seres de Tralfamadore, porque todos estão vivos em algum ponto no tempo, e tudo acontece exatamente como tem de acontecer, o que reflete também a inevitabilidade da vida.

Em Matadouro-Cinco, a indiferença e a aceitação da vida como ela é constituem uma armadura que resiste até às cenas mais grotescas e inconcebíveis. É intrigante e profundamente triste observar como o espírito de um jovem foi quebrado e calejado até os ossos devido a uma "dança compulsória com a morte", como Vonnegut coloca. Por sinal, o capítulo inicial dá uma visão geral da concepção do livro e traz explicações sobre os títulos, o que, como escritor, muito me agradou dar uma espiada no processo criativo de alguém tão bem articulado quanto Kurt.

Eu ainda tento me convencer de que a expressão é um misto de genuína aceitação e de autodefesa, embora eu não saiba dizer qual dos dois prevalece. Guerras são coisas absurdas demais de se imaginar, e apenas que realmente viveu algo parecido tenha respostas para perguntas como essa. De qualquer modo, o pensamento permanece. Um dia após o outro. Coisas boas acontecem, coisas ruins também. Vida que segue. É assim mesmo.

Pu-ti-uít?

Matadouro-Cinco, ou A Cruzada das Crianças: Uma Dança Compulsória com a Morte é, a meu ver, uma obra prima sobre a guerra, sobre sofrimento, sobre uma realidade implacável e sobre um período de enorme crueldade e dor. É um convite a explorar os porquês de nossas ações, os motivos de nossas crenças e de nossos sentimentos. É um relato bruto e cru de tudo que há de mais desumano na história e, ainda assim, não é tratado com revanchismo, não é tratado com fúria, mas sim com a frieza e com o desapego de alguém que já viu o bastante para uma geração inteira de almas perdidas. É uma viagem (no tempo, quem sabe) que nos conduz a olhar as coisas de outra perspectiva. Mas, acima de tudo, eu acredito que o objetivo principal do livro foi trazer à tona um evento até então desconhecido ou com pouca atenção, que foi o bombardeio de Dresden, de uma ótica de quem mal saiu vivo de lá. Sem lados políticos. Apenas a destruição e a morte, e um jovem soldado-optometrista perdido no tempo. É assim mesmo.

Obrigado por ler esta crítica até aqui!
Se quiser, siga-me no Goodreads: www.goodreads.com/gabesness


Um comentário: