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O Homem Duplicado
Autor: José Saramago
Ano: 2002
Gênero: Ficção
Sinopse
O que você faria se descobrisse que tem um sósia, alguém que é o seu retrato fiel, o mesmo rosto, o mesmo corpo, a mesma voz? Na sua cidade moram cinco milhões de pessoas, surpreendente seria não haver duas iguais, embora, esclareça-se desde logo, esta história nada tenha a ver com experiências de clones humanos gerados no laboratório de um cientista louco.
O que fará Tertuliano Máximo Afonso, o sossegado professor de história que, numa noite tumultuada, se vê reproduzido, como em um espelho, num ator secundário de um filme? Seu interlocutor privilegiado, não à toa chamado Senso Comum, aconselha-o a não ir em busca da cópia de si mesmo. Mas nem todos primam pela sensatez, por isso o mundo está do jeito que está.
A essa mesma conclusão desabusada chegará o leitor que acompanhar o extraordinário caso de Tertuliano, o homem duplicado. Pois as singularidades são irredutíveis, e quando um rouba a individualidade do outro, ainda que simbolicamente, ambos perdem a identidade, sem a qual ninguém vive. O professor de história ou o ator: um dos dois abriu a caixa de Pandora; um dos dois está sobrando.
Crítica
Felizmente, na crítica de hoje, não teremos nenhum spoiler! Uma salva de palmas para mim que consegui fazer uma boa análise sem precisar dizer nada muito revelador. Mas quero deixar uma coisa clara aqui: livros como este às vezes têm um impacto muito positivo quando os abordamos às cegas, sem saber o que nos aguarda. Não quero desencorajar a leitura do meu texto, é só um conselho que talvez você prefira seguir. Se sim, não se esqueça de passar aqui de novo depois e ler o que eu tenho a dizer, certo?
Outra coisa, tem um filme baseado nesse livro, do Dennis Villeneuve. Eu não o vi e não faço a menor ideia de como seja, então não vou mencioná-lo aqui. Se eu o assistir, posso fazer um pós-créditos sobre ele e comparar com o livro, mas não garanto nada. Enfim, vamos ao que interessa!
Outra coisa, tem um filme baseado nesse livro, do Dennis Villeneuve. Eu não o vi e não faço a menor ideia de como seja, então não vou mencioná-lo aqui. Se eu o assistir, posso fazer um pós-créditos sobre ele e comparar com o livro, mas não garanto nada. Enfim, vamos ao que interessa!
Introdução
Começo a resenha de hoje agradecendo a minha amiga Alice e seu sebo, o Seboso (você pode encontrá-lo no Instagram: @sebososebo). Ela tem sido minha grande fornecedora de livros há algum tempo e me vendeu os três de Saramago que tenho em casa, dois dos quais eu já li. O livro da vez, O Homem Duplicado, é uma grande obra de um grande autor e, embora eu não seja um especialista literário à altura, vou expor todos os pormenores que me fizeram apreciar a obra e também admirar o seu criador.
O fator Saramago
Antes de adentrarmos nas particularidades do livro, é preciso conversar um pouco sobre o estilo literário do autor. Saramago tem uma maneira muito peculiar e original de abordar a escrita. Seus grandes parágrafos, recheados de vírgulas e carentes de pontos finais, bem como o diálogo introduzido em pleno meio de frase e sem grandes preocupações com sinalizações mais amigáveis, não são coisas que você veria todo dia. Por essa razão, não é de imediato que conseguimos nos adaptar a esse novo paradigma de leitura, tampouco serão todos aos quais essa inovação agradará. Meu primeiro livro de Saramago foi "As Intermitências da Morte", e foi bem complicado no início para que eu entendesse algumas partes da história. Inicialmente, eu não estava gostando nem um pouco da experiência. No entanto, depois de alguns capítulos, passei a ver o outro lado da moeda e, acabado meu segundo livro, sobre o qual estou prestes a falar, estou apaixonado pelo estilo. O autor introduz uma nova e mais profunda camada em seu enredo, quase metalinguística eu diria, ao nos propor a ideia de que o modo como se conta influencia o que se conta também. Aos adeptos dessa quebra enorme nas regras da gramática e da escrita convencionais, serão vistas, com o passar das páginas, as sutis nuances que ela traz. A meu ver, o que observamos ao ler um livro como este é o mais próximo que poderíamos chegar da narração em seu modo falado, exatamente como se estivéssemos contando-a a um amigo ou a um transeunte. E o que é um romance, senão uma transcrição de uma grande narração falada, um registro de uma lenda, de um costume oral com o fim último de remover sua fragilidade e cravá-la na grande História do mundo através da literatura? É exatamente isso que Saramago nos vem pôr à mesa, e iniciativas assim são responsáveis diretas pelo seu Nobel de Literatura.
A trama: o irreal ultrarrealista
O Homem Duplicado, assim como outras obras de José Saramago, como Ensaio sobre a Cegueira e o próprio As Intermitências da Morte, trata de um mundo exatamente igual ao nosso, exceto por um único fator sobrenatural, e discorre sobre as implicâncias do sobrenatural sobre o natural, tece comentários sobre as consequências que algo impensável exerce sobre a fatigante rotina a qual todos já estão exaustos de viver. Em Intermitências, por exemplo, o narrador conta o curioso caso de um país cujos habitantes pararam de morrer da noite para o dia. Aqui, somos apresentados a um absurdo biológico — o doppelgänger materializado, a ideal duplicata, o sósia absoluto, o gêmeo perfeito, porém sem nenhum grau de parentesco. Um desconhecido igual a você, em todos os aspectos possíveis e impossíveis da anatomia humana.
Saramago rompe parcialmente com as noções preestabelecidas do repertório de comportamentos humanos relacionados à existência de um "clone" (com devidas aspas, já que não estamos tratando de um experimento, mas sim uma travessura da chance natural do absurdo). Em vez de estabelecer um panorama de transtorno ou confusão mental, desde muito cedo ele afirma veementemente a concretude da situação: ele existe, mora na mesma cidade que Tertuliano Máximo Afonso e pode estar em qualquer lugar deste conjunto de cinco milhões de rostos. A questão é que conjuntos, conforme sua formal definição matemática, não podem possuir elementos repetidos, e é justamente esse caminho que o autor toma logo após a fatídica descoberta: há dois rostos repetidos; um dos dois está sobrando. Exploram-se os perigos e os limites da curiosidade, além de denotar o assombro gradual e a lenta percepção da realidade. E esse é o maior elogio que devo conceder ao livro: a sua organicidade.
Não há um, eu repito, não há um trecho em todos os acontecimentos na vida de Tertuliano que tenha parecido anormal ou inesperado, no sentido de ser fantasioso. A capacidade de Saramago de tratar as coisas com naturalidade, por mais surpreendentes e anti-intuitivas que sejam, é genuinamente impressionante e é um atributo que vejo muito pouco nos livros que leio — inclusive nas minhas tentativas de alcançar esse nível de habilidade. Ele sabe muito bem olhar o antinatural com olhos de normalidade. Um erro recorrente e bem fácil de se cometer em relação à literatura que insere um conceito aparentemente fantasioso e irreal num mundo sem outras alterações consiste precisamente em tratá-lo com irrealidade e fantasia. Tudo fica duro, mecânico, artificial. Explicações mirabolantes demais para tudo, motivações dos personagens desconexas com a realidade... tudo isso pode se resumir à tentativa de mudar o mundo para entrar em conformidade com o sobrenatural. Saramago, por outro lado, vem com o preceito de que é o sobrenatural que se adapta ao mundo.
Se existem duas pessoas exatamente iguais, em nada isso viola as leis fundamentais do universo, a ponto de distorcê-las para encaixar a proposta. Com efeito, fenômenos se transformam mediante a interpretação do sujeito, o sobrenatural nada mais é senão aquilo que o natural faz dele. Um doppelgänger nada muda na vida de ninguém a não ser na vida do par duplicado, em nosso caso, do desafortunado Tertuliano Máximo Afonso. E mesmo a dele é transformada de modo extremamente delicado e verossímil, sem reviravoltas epopeicas de um filme de Michael Bay. O que o autor faz é uma simples brincadeira que fazíamos muito na infância: perguntar-se "E se...?" e responder sem elaborar todo um teorema metafísico, só relatar o que seria do jeito que seria.
Uma curiosidade: tenho dito, durante esta resenha, que o caso de uma exata duplicata é algo sobrenatural. Contudo, considerando que os átomos no universo são finitos e possuem um número também finito de arranjos possíveis, em um universo suficientemente grande, ou em um tempo suficientemente longo, seria esperado observar cópias dos mesmos arranjos de átomos, ou seja, de estrelas, planetas, e até mesmo pessoas.*
A narração: uma voz presente
Um bom livro apresenta uma história coerente e bem desenvolvida. Um ótimo livro lapida e trabalha ainda mais o enredo, com suspense e ritmo mais trabalhados, para manipular a atenção e as emoções do leitor. Um excelente livro usa até o próprio narrador para acrescentar mais profundidade e nuance ao que se tem a dizer. É o caso de O Homem Duplicado. O nosso narrador aqui é o clássico onisciente, aquele que tudo sabe sobre a história, então vez ou outra pode escapulir de suas palavras um acontecimento futuro e ele pode não se importar com a linearidade. Como já falei, me parece que a intenção de Saramago era aproximar o quanto fosse possível o relato escrito do oral, o que o levou a adicionar ainda mais características suas ao narrador.
Em diversas ocasiões, a história é interrompida pelo narrador, seja para fazer um comentário pessoal sobre o que está acontecendo, seja para criticar ou aprovar o comportamento de algum personagem, seja para falar algo que nada tem a ver com o enredo. Suas intervenções no meio de fatos desimportantes para a trama central me remetem a Clarice Lispector e sua epifania, fazendo ensaios que ninguém pediu nem motivou sobre os mais ordinários assuntos. Assim como a escrita livre e desrespeitosa com a norma culta da pontuação e divisão de parágrafos e diálogos, a aceitação desse trejeito narrativo certamente não é unânime. Reconheço que não se dar bem com essas tangentes pode levar a uma leitura bastante enfadonha e pouco imersiva. Apesar disso, fico feliz que eu não tenha me sentido dessa maneira.
Considerações finais
Honestamente, o início do livro é bem fechado, pouca coisa acontece no mundo, primeiro porque o protagonista ainda não se deparou com seu sósia, segundo porque é um começo que explora o psicológico de Tertuliano Máximo Afonso, preparando o terreno para justificar a colheita logo depois da semente da descoberta. Também fiquei pensando no fato de o livro ser escrito em português de Portugal e se isso influenciou de alguma maneira a minha experiência. Acho que sim, mas positivamente. Por não estar familiarizado com a escrita-padrão portuguesa, não tenho uma base pra julgar quanto e como o autor soube retorcer e reestruturar a língua para aplicar sua personalidade literária. Sinto que o dialeto soa um cadinho mais formal, embora o próprio Saramago não hesite em escrever palavras chulas e linguagem baixa quando lhe é necessário.
O Homem Duplicado é mais que a história de um professor que se depara com seu exato semelhante. É uma análise sobre a identidade humana e como nós a tratamos. O que entendemos por ser nós mesmos? Como se pode exercer uma individualidade que se faz presente em dois homens simultaneamente? O que é ser um objeto e o que é ser sua sombra, e por que esta distinção é relevante? Essas e outras perguntas são levantadas pelo protagonista e pelo narrador e, mais importante que suas respostas, a busca por elas é o fator que motiva todas as ações das personagens de um suspense que consegue ser introspectivo e extrospectivo ao mesmo tempo. Uma tensão que prende o fôlego do leitor enquanto caminha para um desfecho que parece teimar em se revelar por completo e de forma esclarecedora. Propõe grandes reflexões acerca de quem somos, por que somos quem somos e especialmente sobre como podemos demonstrar ao mundo que somos quem somos. É um livro extraordinariamente escrito com o toque irreverente e inusitado de Saramago.
Sobre o final, não vou comentar diretamente, já que quero fazer esta resenha sem precisar dar spoiler. Mas os finais do autor são incrivelmente conectados com toda a trama e com detalhes aparentemente triviais que nos foram passando de maneira simplória e desatenta. E, cumprindo seu devido papel, nos deixam pensando por minutos a fio, mesmo com o livro já fechado, reabrimos, lemos de novo, está lá escrito, não há dúvida, fechamos, pensamos, voltamos a pensar, reabrimos o livro e assim se seguem mais minutos e mais iterações do mesmo comportamento. O mesmo comportamento. Um comportamento igual ao outro. O anterior igual ao seguinte. Um comportamento duplicado.
* Referência: https://www.youtube.com/watch?v=1GCf29FPM4k
Obrigado por ler esta crítica até aqui!
Se quiser, siga-me no Goodreads: www.goodreads.com/gabesness
A trama: o irreal ultrarrealista
O Homem Duplicado, assim como outras obras de José Saramago, como Ensaio sobre a Cegueira e o próprio As Intermitências da Morte, trata de um mundo exatamente igual ao nosso, exceto por um único fator sobrenatural, e discorre sobre as implicâncias do sobrenatural sobre o natural, tece comentários sobre as consequências que algo impensável exerce sobre a fatigante rotina a qual todos já estão exaustos de viver. Em Intermitências, por exemplo, o narrador conta o curioso caso de um país cujos habitantes pararam de morrer da noite para o dia. Aqui, somos apresentados a um absurdo biológico — o doppelgänger materializado, a ideal duplicata, o sósia absoluto, o gêmeo perfeito, porém sem nenhum grau de parentesco. Um desconhecido igual a você, em todos os aspectos possíveis e impossíveis da anatomia humana.
Saramago rompe parcialmente com as noções preestabelecidas do repertório de comportamentos humanos relacionados à existência de um "clone" (com devidas aspas, já que não estamos tratando de um experimento, mas sim uma travessura da chance natural do absurdo). Em vez de estabelecer um panorama de transtorno ou confusão mental, desde muito cedo ele afirma veementemente a concretude da situação: ele existe, mora na mesma cidade que Tertuliano Máximo Afonso e pode estar em qualquer lugar deste conjunto de cinco milhões de rostos. A questão é que conjuntos, conforme sua formal definição matemática, não podem possuir elementos repetidos, e é justamente esse caminho que o autor toma logo após a fatídica descoberta: há dois rostos repetidos; um dos dois está sobrando. Exploram-se os perigos e os limites da curiosidade, além de denotar o assombro gradual e a lenta percepção da realidade. E esse é o maior elogio que devo conceder ao livro: a sua organicidade.
Não há um, eu repito, não há um trecho em todos os acontecimentos na vida de Tertuliano que tenha parecido anormal ou inesperado, no sentido de ser fantasioso. A capacidade de Saramago de tratar as coisas com naturalidade, por mais surpreendentes e anti-intuitivas que sejam, é genuinamente impressionante e é um atributo que vejo muito pouco nos livros que leio — inclusive nas minhas tentativas de alcançar esse nível de habilidade. Ele sabe muito bem olhar o antinatural com olhos de normalidade. Um erro recorrente e bem fácil de se cometer em relação à literatura que insere um conceito aparentemente fantasioso e irreal num mundo sem outras alterações consiste precisamente em tratá-lo com irrealidade e fantasia. Tudo fica duro, mecânico, artificial. Explicações mirabolantes demais para tudo, motivações dos personagens desconexas com a realidade... tudo isso pode se resumir à tentativa de mudar o mundo para entrar em conformidade com o sobrenatural. Saramago, por outro lado, vem com o preceito de que é o sobrenatural que se adapta ao mundo.
Se existem duas pessoas exatamente iguais, em nada isso viola as leis fundamentais do universo, a ponto de distorcê-las para encaixar a proposta. Com efeito, fenômenos se transformam mediante a interpretação do sujeito, o sobrenatural nada mais é senão aquilo que o natural faz dele. Um doppelgänger nada muda na vida de ninguém a não ser na vida do par duplicado, em nosso caso, do desafortunado Tertuliano Máximo Afonso. E mesmo a dele é transformada de modo extremamente delicado e verossímil, sem reviravoltas epopeicas de um filme de Michael Bay. O que o autor faz é uma simples brincadeira que fazíamos muito na infância: perguntar-se "E se...?" e responder sem elaborar todo um teorema metafísico, só relatar o que seria do jeito que seria.
Uma curiosidade: tenho dito, durante esta resenha, que o caso de uma exata duplicata é algo sobrenatural. Contudo, considerando que os átomos no universo são finitos e possuem um número também finito de arranjos possíveis, em um universo suficientemente grande, ou em um tempo suficientemente longo, seria esperado observar cópias dos mesmos arranjos de átomos, ou seja, de estrelas, planetas, e até mesmo pessoas.*
A narração: uma voz presente
Um bom livro apresenta uma história coerente e bem desenvolvida. Um ótimo livro lapida e trabalha ainda mais o enredo, com suspense e ritmo mais trabalhados, para manipular a atenção e as emoções do leitor. Um excelente livro usa até o próprio narrador para acrescentar mais profundidade e nuance ao que se tem a dizer. É o caso de O Homem Duplicado. O nosso narrador aqui é o clássico onisciente, aquele que tudo sabe sobre a história, então vez ou outra pode escapulir de suas palavras um acontecimento futuro e ele pode não se importar com a linearidade. Como já falei, me parece que a intenção de Saramago era aproximar o quanto fosse possível o relato escrito do oral, o que o levou a adicionar ainda mais características suas ao narrador.
Em diversas ocasiões, a história é interrompida pelo narrador, seja para fazer um comentário pessoal sobre o que está acontecendo, seja para criticar ou aprovar o comportamento de algum personagem, seja para falar algo que nada tem a ver com o enredo. Suas intervenções no meio de fatos desimportantes para a trama central me remetem a Clarice Lispector e sua epifania, fazendo ensaios que ninguém pediu nem motivou sobre os mais ordinários assuntos. Assim como a escrita livre e desrespeitosa com a norma culta da pontuação e divisão de parágrafos e diálogos, a aceitação desse trejeito narrativo certamente não é unânime. Reconheço que não se dar bem com essas tangentes pode levar a uma leitura bastante enfadonha e pouco imersiva. Apesar disso, fico feliz que eu não tenha me sentido dessa maneira.
Considerações finais
Honestamente, o início do livro é bem fechado, pouca coisa acontece no mundo, primeiro porque o protagonista ainda não se deparou com seu sósia, segundo porque é um começo que explora o psicológico de Tertuliano Máximo Afonso, preparando o terreno para justificar a colheita logo depois da semente da descoberta. Também fiquei pensando no fato de o livro ser escrito em português de Portugal e se isso influenciou de alguma maneira a minha experiência. Acho que sim, mas positivamente. Por não estar familiarizado com a escrita-padrão portuguesa, não tenho uma base pra julgar quanto e como o autor soube retorcer e reestruturar a língua para aplicar sua personalidade literária. Sinto que o dialeto soa um cadinho mais formal, embora o próprio Saramago não hesite em escrever palavras chulas e linguagem baixa quando lhe é necessário.
O Homem Duplicado é mais que a história de um professor que se depara com seu exato semelhante. É uma análise sobre a identidade humana e como nós a tratamos. O que entendemos por ser nós mesmos? Como se pode exercer uma individualidade que se faz presente em dois homens simultaneamente? O que é ser um objeto e o que é ser sua sombra, e por que esta distinção é relevante? Essas e outras perguntas são levantadas pelo protagonista e pelo narrador e, mais importante que suas respostas, a busca por elas é o fator que motiva todas as ações das personagens de um suspense que consegue ser introspectivo e extrospectivo ao mesmo tempo. Uma tensão que prende o fôlego do leitor enquanto caminha para um desfecho que parece teimar em se revelar por completo e de forma esclarecedora. Propõe grandes reflexões acerca de quem somos, por que somos quem somos e especialmente sobre como podemos demonstrar ao mundo que somos quem somos. É um livro extraordinariamente escrito com o toque irreverente e inusitado de Saramago.
Sobre o final, não vou comentar diretamente, já que quero fazer esta resenha sem precisar dar spoiler. Mas os finais do autor são incrivelmente conectados com toda a trama e com detalhes aparentemente triviais que nos foram passando de maneira simplória e desatenta. E, cumprindo seu devido papel, nos deixam pensando por minutos a fio, mesmo com o livro já fechado, reabrimos, lemos de novo, está lá escrito, não há dúvida, fechamos, pensamos, voltamos a pensar, reabrimos o livro e assim se seguem mais minutos e mais iterações do mesmo comportamento. O mesmo comportamento. Um comportamento igual ao outro. O anterior igual ao seguinte. Um comportamento duplicado.
* Referência: https://www.youtube.com/watch?v=1GCf29FPM4k
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