terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Posfácio #3 - Nós

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Nós


Autor: Eugene Zamiátin
Ano: 1924
Gênero: Distopia

Sinopse

D-503 é um engenheiro que vive pleno e feliz (exatamente como ordena o grandioso Estado Único), mas começa a duvidar das próprias convicções ao conhecer uma misteriosa mulher que comete a ousadia de burlar regras, e que o contamina com a doença chamada imaginação. Escrita em 1923, a renomada distopia Nós imaginou a vida sob um governo totalitário que eliminou por completo a noção de individualidade, em uma história que inspirou clássicos como 1984 e Admirável mundo novo. [retirada do livro]

Crítica

Como já deve ser sabido por alguns de meus leitores neste blog, meu gênero literário favorito talvez sejam as distopias. Todas elas, invariavelmente, costumam dar um soco no estômago daqueles de nós que se sentem conformados demais ou não dão devida importância em relação a aspectos específicos de nossa sociedade. Esse amor, semeado em 2016 por George Orwell em seus A Revolução dos Bichos e 1984, levou-me, por fim, ao livro sobre o qual hoje faço uma crítica. Nós é mais conhecido por ter sido o difusor pioneiro das distopias como são concebidas atualmente. Sendo essa a inspiração para um de meus livros favoritos, o mínimo que eu poderia oferecer era ler as palavras de Zamiátin.

Com certeza, preciso lê-lo mais uma vez. Parei diversas vezes, o que pode ter prejudicado minha experiência. Ainda assim, esta é uma das melhores distopias que já li - talvez eu precise também reavaliar o lugar de 1984 na ordem dos prediletos. A trama é narrada num modo que se assemelha ao romance epistolar (quando uma história é contada através de cartas entre dois ou mais personagens). No caso de Nós, acompanhamos um caderno de anotações escrito pelo protagonista, D-503. O ponto mais forte do livro é a excepcional capacidade de escrita sinestésica do autor. A facilidade, a naturalidade e a fluidez com que o personagem ilustra seus pensamentos e sentimentos não apenas condizem com sua personalidade - que, por sinal, é logo de cara inerentemente estranha e incômoda a nós -, como também orientam de maneira excelente a imaginação do leitor. Uma metáfora ou analogia pouco desenvolvidas pode deixar as nuances da mensagem vagas demais e, assim, perderem parte da imersão literária. Contrariamente, abusar de explicações pode deixar a narrativa descritiva demais, o que costuma tornar a leitura cansativa e, pior que isso, subestimar a capacidade do leitor de sair do óbvio e enxergar o explícito.

Em outras palavras, um enigma complexo demais pode causar desinteresse e falta de envolvimento, enquanto que um mastigadinho e acompanhado de um manual de instruções o torna previsível e monótono. Para meu contentamento, o autor tem um bom domínio do que deve ser dito para que a subjetividade da interpretação de cada pessoa permaneça com a leitura. Esse é um traço que dificilmente encontro em outras distopias, pelo menos com essa precisão cirúrgica.

Porém, é necessária uma ressalva. Como disse, a descrição do psicológico de D-503 é excepcionalmente condizente com sua personalidade. Por ele ser um engenheiro, no entanto, há uma quantidade considerável dessas alusões sentimentais que se utilizam de termos da lógica ou da matemática que são menos conhecidos pelo leitor médio. Não são totalmente técnicos, mas eu diria que não é qualquer pessoa que saberia decifrar significados além dos literais dessas palavras. Por acaso eu faço um curso de exatas, o que me facilitou e provavelmente adicionou uma nova camada de entendimento e identificação com o personagem.

Não há tantas reviravoltas e acontecimentos inesperados e impactantes quanto em 1984, por exemplo. Contudo, Zamiátin soube muito bem desenvolver seus personagens (ou a maioria deles) e a história prossegue de maneira natural, sem a preocupação de desvelar os eventos de maneira abrupta. É importante dizer que são escolhas de ritmos narrativos diferentes: enquanto que Orwell encara a história de seu protagonista, Winston, como uma corrida contra a repressão desenfreada e asfixiante do Grande Irmão, Nós é um livro menos acelerado. Isso não é algo ruim, a questão é que os autoritarismos propostos pelos dois são essencialmente diferentes. Eugene propôs um ambiente naturalmente esterilizado, digamos assim, onde os indivíduos já nascem sem individualidade e, sendo assim, some a necessidade (aparente) de excessivo controle e vigilância vistos no livro de Orwell.

Para fechar a seção sem spoilers, concluo dizendo que Nós foi uma experiência surpreendente, apesar de eu não esperar menos da obra que inspirou dois dos autores políticos mais influentes do século XX. Por ser o precursor de seu próprio gênero, carece de um certo grau assertivo de consciência política, do qual seus futuros irmãos dispunham abundantemente. A meu ver, isso é compreensível, pois considero que o objetivo central do livro seja, na verdade, acompanhar D-503. Afinal de contas, o livro é escrito pelo próprio engenheiro, que prontamente se compromete a compartilhar conosco sua vida e suas transformações num meio que nos é antinatural e inconcebível (mas não deveria ser tanto assim).

Análise

Aviso: esta seção contém SPOILERS!


Logo de início volto a falar sobre as metáforas de D-503 sobre seus sentimentos. É impressionante como podemos acompanhar toda a mudança dele se apenas lêssemos o modo com o qual ele fala sobre o que sente e o que pensa. No início do romance, ele era apenas um engenheiro e, acima disso, um habitante do Estado Único. Sua descrição e percepção do mundo se resumem aos seus silogismos e à racionalidade, que aqui é endeusada e utilizada como instrumento de propaganda a favor da manutenção do autoritarismo e da falta de liberdade. As premissas difundidas pelo Estado são mais simples do que inicialmente imaginamos, e até fazem sentido. Um exemplo: a liberdade é inimiga da felicidade. Essa é uma premissa que parece contraditória e absurda. Mas, à medida que D destrincha o raciocínio em suas ideias mais simples e nos guia através de suas implicações, vemos que não há equívoco. Caso queiramos atingir a máxima felicidade, será preciso abdicar da liberdade. Pois ser livre é, também, ser infeliz.

Tome o Estado Único como um pai que quer o melhor possível para o seu filho, aquele que fará o necessário para fazê-lo feliz. Isso porque é o próprio Estado quem calculou - literalmente - a felicidade. Tais raciocínios nos fazem refletir sobre os motivos de considerarmo-los absurdos de início, e pode até nos fazer pensar se seria desejável tal felicidade ao preço de uma autoridade final e inescapável. Você, assim como eu, pode pensar que existe uma relação bem semelhante a essa no Paraíso cristão, já que é um lugar de infinita felicidade e absolutamente desprovido de pecado. Não por acaso, Nós também menciona a religião e o Deus comumente associado ao cristianismo, fazendo comparações entre o pensamento religioso da época e a realidade na qual D-503 vive.

Depois que ele conhece I-330, a mulher que quebra as regras estabelecidas pelo governo sem qualquer preocupação, ele acaba desenvolvendo algo dentro de si. Mais tarde no livro, vemos que ele é diagnosticado com uma doença, a qual todos chamam de imaginação. Ele também desenvolve uma alma. Com o passar do tempo, observamos a agonia latente de um ser que jamais conhecera a individualidade e quer encerrar seu sofrimento o mais rápido possível, para que se possa voltar à apatia racional costumeira e confortável. Somos apresentados com as diversas fases da reação de D à sua transição para o seu "eu selvagem", como ele denomina: surpresa, negação, raiva, frustração, medo, aceitação, submissão e, por fim, o êxtase em se sentir vivo. Todas essas fases são permeadas, mais uma vez, com uma descrição psicológica de delicadíssima precisão.

Desnecessário dizer que ele também acaba se apaixonando por I, e grande parte da condução da narrativa se dá através dessa paixão literalmente desenfreada. O que leva ele e o leitor para o conflito central do personagem: uma racionalidade objetiva e infinitamente correta contra um sentimentalismo transcendental e selvagem, antiético, antinatural, antifeliz. Tamanho foi meu apreço por essa abordagem que fiz um pequeno texto inspirado em minhas interpretações do livro. Você pode lê-lo clicando aqui.

Nós pode não ter o grande alerta político que outras distopias escritas na mesma época, porém traz reflexões filosóficas metafísicas muito mais profundas que qualquer outro livro desse gênero. O que li aqui certamente retornará a esse blog como tema de outro texto, pois há muito a ser dito que não caberia nesta resenha. Foi, de fato, uma belíssima surpresa eu tê-lo achado. Farei em breve um comparativo entre ele e 1984 e minhas considerações sobre cada autor e cada livro, agora que li ambos. Por enquanto, deixo meu agradecimento a Zamiátin, primeiramente pela bela obra, e depois por ter estreado, de maneira brilhante, um gênero literário tão importante e tão querido por mim.

Obrigado por ler esta crítica até aqui!
Se quiser, siga-me no Goodreads: www.goodreads.com/gabesness

Um comentário:

  1. http://revistacidadesol.blogspot.com/2020/09/ficcao-e-historia-em-1984-de-george.html

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