domingo, 1 de dezembro de 2019

Cultura de cancelamento: um exemplo histórico do seu perigo

Hoje de manhã, eu finalmente terminei de ler "Nós", de Eugene Zamyátin. Foi uma grande experiência literária, e uma resenha do livro virá logo em breve, não se preocupem. Mas, antes de discutirmos a história e estilo encantador e sinestésico da sua narrativa, acho que seria uma boa falarmos um pouco sobre o autor e sobre a tão famosa cultura de cancelamento - e por que eu penso que isso é um comportamento preocupantemente aceitável nos dias de hoje.


Definição

Se você (felizmente) não está familiarizado com esse termo, ou já ouviu por aí mas não sabe muito do que se trata, vamos falar sobre o que é essa tal cultura de cancelamento. Esse é um fenômeno bastante comum em redes sociais, em especial no Twitter. Eu diria que, apesar de não se restringir a isso, essa cultura é predominantemente digital. Esses "cancelamentos" já viraram certa rotina na internet, mas casos mais concretos e de danos mais materiais são bem raros. Uma definição boa para a cultura de cancelamento, embora não seja a única, é "a prática de não mais apoiar pessoas, especialmente celebridades, ou produtos que sejam considerados inaceitáveis ou problemáticos". Os critérios para uma pessoa ser considerada problemática podem vir tanto de alguma fala quanto de alguma ação. Isso chegou a tal ponto que existe hoje o conceito de "central de cancelamento" - é claro que é meme, mas ainda assim é algo a se pensar.

O grande problema é que essa parte de "não apoiar" quase nunca se detém a um boicote individual. Na maioria das vezes, essa mentalidade se expande ao ponto de promover não apenas a dissociação total das pessoas com a "entidade" em questão, mas também se torna uma verdadeira tentativa de aniquilar a carreira e tudo que a pessoa tem ou faz, como um modo de punição e reparação pelo comportamento dito inadequado. Um objetivo frequente dessa estratégia é, por exemplo, forçar a pessoa a se retirar das mídias sociais que possui, para que assim essas falas e/ou ações não se repitam.

Eu não pretendo, com esse texto, argumentar se essa cultura funciona ou não (spoiler: não funciona), mas quero trazer um exemplo de atitudes semelhantes para que possamos refletir se isso é mesmo o melhor caminho.

O exemplo

Eugene Zamyátin foi um escritor russo nascido em 1884. Tendo vivido o regime czarista, foi preso em 1906 e, posteriormente, pelos bolcheviques em 1922, além de ter sido exilado diversas vezes durante sua vida. Porém, seu último exílio foi voluntário: redigiu uma carta a Stálin, pedindo-lhe que concedesse permissão para viajar ao exterior. Em sua carta, Zamyátin diz que foi sentenciado à morte (literária). Ele relata como seus trabalhos foram progressivamente encarados e difundidos como malignos, como foi-lhe atribuída uma "intenção diabólica" e como a rejeição quase unânime dos críticos e dos leitores o tem impactado.

Segue, abaixo, um trecho da carta:

"Eu sei que tenho o hábito altamente inconveniente de dizer o que eu considero ser a verdade em vez de dizer o que pode ser conveniente no momento. Em particular, nunca disfarcei minha atitude em relação ao servilismo literário, à bajulação e à mudança de cor camaleônicas: eu senti, e ainda sinto, que isso é igualmente degradante tanto para o escritor quanto para a Revolução [Russa, de 1917]. Mencionei essa questão em um de meus artigos [...] de forma que muitas pessoas consideraram rude e ofensiva, e isso serviu como um sinal na época para o lançamento de uma campanha contra mim em jornais e revistas. [...] Não importa qual seja o conteúdo de uma obra, o mero fato de ter minha assinatura se tornou razão suficiente para declará-la criminosa."

Zamyátin segue sua carta citando exemplos de obras suas que sofreram essa represália pelo simples fato de estarem associadas ao seu nome. Ele também fala de como o gabinete literário regional de Leningrado havia banido seu artigo e, como se isso não fosse o bastante, também proibira a editora de publicar o nome de Eugene como editor de outras publicações. Ele segue falando de uma peça de teatro, na qual trabalhou durante três anos, que, segundo ele, estava confiante de que silenciaria os críticos. Lida num comitê artístico, a peça foi avaliada com um tom geral de aprovação. Aparentemente, estava tudo bem. No entanto, já com a peça semi-ensaiada e anunciada em cartazes, o gabinete decidiu mais uma vez banir a obra, o que o autor classificou como uma tragédia.

Neste outro trecho da carta, ele descreve os desdobramentos de sua carreira literária no país após esse episódio:

"Sem dúvida, qualquer falsificação é permitida na luta contra o diabo. [...] A caçada humana organizada na época não teve precedentes na literatura soviética e até virou notícia na imprensa estrangeira. Foi feito todo o possível para fechar todos os caminhos para as minhas nova obras. Eu me tornei objeto de temor para meus antigos amigos, editoras e teatros. Minha peça The Flea [...] foi tirada do repertório. A publicação das minhas obras completas pela Federatsiya Publising House foi suspensa. Todas as editoras que tentaram lançar minhas obras imediatamente foram postas na fogueira; isso aconteceu com a Federatsiya, a Zemlya I Fabrika e, sobretudo, com a Editora dos Escritores de Leningrado. Esta última se arriscou a me manter em seu comitê editorial por mais um ano e ousou fazer uso de minha experiência literária ao me confiar a edição estilística das obras de jovens escritores, inclusive comunistas. Na primavera passada, a sucursal da RAPP [Associação Russa dos Escritores Proletários], em Leningrado, foi bem-sucedida em me forçar a sair do comitê, pondo um fim a esta obra. A Literaty Gazette anunciou este feito, acrescentando de modo inequívoco: 'A editora deve ser preservada, mas não para os Zamyátins'. A última porta para o leitor foi fechada para Zamyátin. A sentença de morte do escritor foi pronunciada e publicada."

Finalmente, Eugene pede a Stálin que seja deportado da União Soviética, dado que cometeu esse "crime", ou que pelo menos o permita viajar para o exterior por um tempo, acompanhado de sua esposa. Ele gostaria de ir para a Europa para poder ser livre e escrever os livros e peças que bem entendesse, e finalmente se livrar da perseguição literária que tanto sofreu. Aos curiosos que gostariam de saber o fim da história, Stálin concedeu a permissão a Zamyátin, que passou a morar em Paris com sua esposa e lá ficou até a sua morte, em 1937. Sua publicação mais famosa é o próprio "Nós", que ganhou mais atenção depois que George Orwell, autor da clássica distopia "1984", o encontrou e o resenhou (mais sobre isso em minha resenha). Ainda assim, o livro levou quase quatro anos para ser publicado e o fez com dificuldade. Talvez isso reflita a falta de popularidade do livro e, com certeza, o período em que Eugene morou na URSS foi um fator determinante para isso.

A relação com o atual

O caso de Eugene certamente não é o primeiro e nem o último deles. Eu o trago hoje para mostrar que o cenário pelo qual o autor russo passou é fruto da tal cultura de cancelamento levada às últimas instâncias. E é também a consequência prática final dela. Eu não estou insinuando que essa mentalidade de cancelar foi a responsável singular de todos os males e de toda a censura - com certeza o período histórico e o fator governamental foram igualmente, senão mais influentes para que Zamyátin fosse de fato coibido e censurado. A minha crítica é apontada para a aceitação social desse "movimento". Não há dúvidas de que os conterrâneos do autor não repudiavam a censura imposta a ele, mas até a aprovavam. Isso porque as obras de Zamyátin ofendiam, criticavam, iam de contramão ao sistema vigente e à ideologia predominante. E é nessas horas que fica difícil para muitos compreenderem o sentido de uma verdade liberdade de expressão: a liberdade de dizer o ofensivo, o escandaloso, o herético, o profano. Como diria o próprio Orwell em "1984", "liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro". Dá pra ver o esforço empregado pela sociedade dos anos 1920 para tolher Eugene. Mais assustador que isso é imaginar quão mais facilmente esse objetivo seria alcançado caso eles tivessem a tecnologia dos dias atuais.

É no mínimo preocupante reconhecer que esse tipo de atitude anda sendo aceito e encorajado na internet. Primeiro porque a internet junta uma quantidade enorme de pessoas e potencializa o tribalismo natural do ser humano, resultando em bolhas sociais enormes; e segundo porque essas bolhas, na maioria das vezes, tomam seus rumos de forma impulsiva quando se trata de cancelamento. Tanto é que não é raro ver essas mesmas pessoas confusas com os cancelados da semana, e ainda mais comum é ver discussões sobre os cancelamentos: se determinada pessoa ou deveria ser cancelado. Sendo eu uma pessoa que me oponho a isso, não vou mentir que é muito engraçado ver a gente perdida e confusa, o que só realça a falha no raciocínio no qual esse comportamento se baseia. A depender do feedback deste texto, poderei continuar meus pensamentos acerca do tema, de maneira mais detalhada. Mas, por ora, fica a minha crítica pontual. 

A resenha de Orwell foi publicada em 1946. Zamyátin talvez não pudesse ter visto a magnitude que sua maior obra ganharia. Mas ele permanece na História como um homem que lutou, da forma que pôde, a favor da liberdade. Apesar de ele não poder ser compensado pelo que sofreu, sua história e sua sociedade hoje nos ensinam uma valiosa lição sobre um caminho perigosíssimo que, se quisermos realmente uma sociedade mais justa e livre para todos, devemos não apenas evitar, mas também desconstruir e desencorajar.

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