quarta-feira, 24 de abril de 2019

Pós-créditos #1 - O Lagosta (The Lobster)

Teaser Trailer

Eu acho que uma das melhores coisas de apreciar obras de arte é poder discuti-las depois com outras pessoas. Do mesmo jeito que fiz com livros, começando com "Eu, Robô" de Isaac Asimov (que você pode ver aqui), decidi fazer o mesmo com filmes. Acho que eles terão maior presença aqui, dado que são bem mais sucintos que as centenas de páginas que compõem as obras literárias. A estrutura será a mesma: a ficha técnica, seguida da sinopse do filme; minha crítica (sem spoilers) e uma breve análise pessoal sobre o conteúdo abordado.

O Lagosta (The Lobster)



Ficha técnica:

Ano: 2015
Gênero: comédia romântica, ficção científica
Direção: Yorgos Lanthimos
Duração: 118 min (1h58)


Sinopse:

Em um futuro próximo e distópico, pessoas solteiras (os chamados solitários), de acordo com as leis da Cidade, devem ir para O Hotel, onde deverão encontram um parceiro romântico dentro de 45 dias, ou então serão transformados em animais e enviados à selva.

Crítica:

Nota: 8/10

The Lobster é um filme incrível. Eu não via algo tão bom assim na Netflix há um bom tempo. Assisti por recomendação de alguns amigos - bem mais cinéfilos do que eu. Logo de cara, é possível notar que a fotografia do filme é excelente: as escolhas de enquadramento e takes foi muito bem feita, e a paleta de cores (um aspecto que pessoalmente me chama muita atenção) é linda e harmônica. Essa foi uma característica que capturou meu interesse logo nos minutos iniciais e causou uma primeira impressão convincente e promissora.



Em segundo lugar, a premissa do filme também me atraiu muito. Um tema tão contundente como esse merecia uma execução, no mínimo, genial - e foi justamente o que recebi. O diretor Yorgos Lanthimos soube explorar o conceito apresentado e sua narrativa foi bastante curiosa. Não muito tradicional, mas curiosa. Com certeza não é o que você espera ver todo dia, mas também não é todo dia que se vê um filme como este.

Finalmente, o toque final de toda a composição foi a trilha sonora do longa. Os momentos de silêncio preenchido pela orquestra não poderia ter encaixado melhor, o que deu até uma atmosfera de comédia - é claro que, tratando-se deste filme, é uma tragicomédia - e, a meu ver, serviu para aliviar a tensão acumulada em certas partes, porém de uma forma natural, sem abuso de diálogos forçados nem atuação estereotipada.

Como um último comentário desprovido de spoilers, acho que vale dizer aqui que assisti a The Lobster na companhia de minha digníssima namorada (oi, amor. Sei que você está lendo isto, então deixo aqui o meu "te amo". Uma surpresinha para você). Foi uma experiência no mínimo engraçada, já que, nessa sociedade, seríamos a classe social privilegiada, a elite. Lidar com os questionamentos e discussões abordados foi também muito interessante, conversamos bastante sobre nossas opiniões.


Análise:

(Último aviso: esta seção contém spoilers.)


Então, vamos falar de O Lagosta. Que filme sensacional. Não tem uma cena do primeiro ato do filme que não tenha seu devido propósito. Criar a atmosfera de estranheza que o filme precisa é de suma importância para a imersão do espectador. A polidez e a cordialidade presentes nos diálogos durante o check-in de David no Hotel caíram como uma luva para contrastar com o absurdo do que acontece lá, conferindo muita naturalidade em todos aqueles processos, como se fossem "ritos de passagem" daquela específica sociedade. Claro, naturalidade não implica em satisfação ou contentamento; o desconforto do protagonista é claro e inquestionável, ainda que haja uma tentativa não muito boa em escondê-lo (talvez a foto acima ilustre um pouco o que quero dizer). Ele está acompanhado de seu irmão, já transformado em cachorro, e suas expressões e atitudes transmitem a ubíqua sensação de que seu destino fatalmente se assemelhará ao do parente, agora canino. Todo esse clima de resignação é sazonalmente quebrado com pitadas de um humor muito bem pensado, no qual nos vemos obrigados a rir da desgraça dos personagens - e, em grande medida, de um pouco de nossa própria desgraça. Gosto de ver The Lobster como uma distopia satírica, que escarnece obsessões do ser humano. Neste caso, uma obsessão bastante duradoura, deve-se acrescentar.

No entanto, O Hotel não é o único lugar onde existem imposições comportamentais regendo a vida alheia. Frustrado por não conseguir se envolver com ninguém e, mais ainda, por posteriormente precisar fingir sentimentos e apatia para a parceira que, já perto de seu prazo de validade, foi forçado a arranjar, David se volta contra todos e consegue escapar, fugindo para as florestas ao redor da localidade. Ele é encontrado por uma comunidade de outros fugitivos, que o convida a se juntar a eles, contanto que ele não se envolva afetivamente com outros membros do grupo. Aparentemente, não há como alcançar um meio-termo: ou o indivíduo se adequa às exigências da Lei, ou ele deve aceitar a firmeza e vigilância da contracultura, que é tão avessa à ideia de relacionamentos quanto dura em suas penalidades. A paz conquistada ao preço da falta de liberdade parece confortável, porém ela se torna sufocante quando o homem se apaixona por uma mulher, e o sentimento é recíproco. É nesse momento em que as políticas da comunidade se provam tão humilhantes e autoritários quanto as do resto da sociedade - a mulher é cegada pela líder dos solitários. O casal abalado foge para a cidade, lugar onde já serão aceitos, por não estarem mais sozinhos. Porém, por um preço alto a se pagar, pois agora eles não possuem o atributo em comum que possuíam: a miopia. Aliás, isto é outro tema recorrente no filme: coisas em comum.

Existe a ideia fortíssima em O Lagosta de que um casal certo é um casal que dispõe de uma semelhança intrínseca, uma semelhança que os parceiros possuem entre si, e entre si apenas. Ainda na época em que estava no hotel, David conheceu uma moça que sangrava constantemente pelo nariz. Um de seus amigos, para conquistá-la, bate sua cabeça para provocar sangramentos e forçar ser seu parceiro ideal. Mais tarde, depois de ter sido cegada, a amante de David e ele próprio ficam bastante preocupados por terem perdido sua semelhança, até que o filme termina com ele indo ao banheiro, munido de uma faca e a apontando para os próprios olhos. Essa fixação intensa chega a incomodar o espectador, porém para todos os personagens é uma premissa primordial. O mais assustador é que esse ímpeto vem de dentro de cada um, não é uma regra imposta por ninguém.

Dois aspectos técnicos se destacaram na minha experiência: o primeiro deles é que O Lagosta parece ser composto de dois filmes, sendo um deles narrando a história de David no Hotel e o outro, narrando o que se passou depois. Acho eu que essa desconexão foi uma escolha deliberada, tanto para aumentar ainda mais a aura de estranhamento quanto para ressaltar que O Hotel e a comunidade de solitários são dois lados da mesma moeda, duas instituições que pretendem reger o comportamento de seus membros. O segundo aspecto é o de que os diálogos neste filme parecem muito robóticos. Falta vida às falas, não há expressão e emoção naquilo que se diz. Porém, decidi colocar esse comentário aqui e não na parte da crítica por um motivo muito bom: acredito ser este o tom geral e a proposta do filme. A apatia como subproduto inevitável de uma cultura tão nociva aos sentimentos. Apenas vi emoções por parte de David em duas ocasiões no filme: quando sua parceira no Hotel mata seu irmão e quando ele está com a faca em suas mãos, pronto para dar fim à sua visão.

Para concluir, interpreto de O Lagosta uma crítica quanto a restrições à nossa liberdade no quesito afetivo. Não no sentido de sempre, o de que não se é permitido amar devido a certas circunstâncias. O problema apresentado, e isto é algo que custa a ser entendido por muitas pessoas, é que nos é vedada a liberdade de algo que nem sequer é uma escolha. Sentimentos, devo sempre relembrar aos esquecidos, não são voluntários. Proibições ou obrigações sentimentais são as atitudes mais desastrosas e mais ineficazes que podem existir, justamente pelo fato de eles não serem atributos conscientes dos seres humanos. E, é claro, por serem, mais cedo ou mais tarde, em menor ou maior grau, aquilo que nos controla e, no fim do dia, ao ter a cabeça recostada no travesseiro logo antes de dormir, nos subjuga.




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