Foi realmente uma grata conveniência a ideia de esta publicação ter vindo logo após um texto que trata de arte. Os objetivos e temas são bem diferentes, mas muito me agradou essa pequena conexão estabelecida. Aquilo de que falarei hoje é em parte uma discussão, em parte um desabafo. Toda pessoa tem um lado artístico dentro de si, e sempre é muito admirável quando ele se desenvolve e nos dá frutos. Mas a habilidade tem seu preço, e ela traz consigo alguns efeitos colaterais aos quais todos nós, conscientes ou não, somos submetidos. Um contrato invisível e interno dita os direitos e deveres dos artistas. Vale reforçar a noção de que as cláusulas não são concretas, mas sim meramente psicológicas - não que isso as torne mais brandas e suaves. Assim como cada ser humano é único, também o é cada contrato. E a verdade é que eu tenho sofrido com o meu durante os últimos meses e, talvez, até durante o último ano.
sístole
Inspiração: a palavra adequada numa frase, a nota certa numa música, a cor complementar numa pintura. Não apenas a arte, mas todas as esferas da vida humana interagem com a inspiração rotineiramente. Ela é o oásis donde vêm as grandes ideias que movem a humanidade, da invenção da roda à teoria da relatividade. A inspiração é inquilina de todo artista, ela e a alma humana coexistem dentro do mesmo corpo. Faz bem manter uma convivência saudável com ela, mesmo que não seja perfeita. Desentendimentos podem ser frequentes, a depender do cultivo dessa relação e as consequências virão, inevitavelmente.
Eu nunca me senti muito no controle da minha própria criatividade. Desde que comecei a engatinhar no campo artístico - majoritariamente literário, por sinal -, a impressão que sempre tive era a de que eu não passava de um mero intermediário, como se alguém me estivesse ditando palavras e ordenando-as para mim. De início, são pequenas ideias atraentes que, dado um médio prazo de maturação, ganham um tronco robusto e vários ramos pelos quais suas flores futuramente desabrocharão e seus frutos alimentarão leitores interessados naquele sabor em questão. Tudo que sinto em momentos assim é apenas um fluxo, geralmente incontrolável, de coisas a se pensar e a se dizer. Até redigir este texto segue o protocolo. Essa falta de controle pode ser um pouco prejudicial, e realmente o foi. Havia épocas em que escrevia um ou dois textos por mês. Depois, passava três noites seguidas escrevendo durante seis horas por dia. Depois, nada. Hiato. Depois, cinco contos em vinte e oito dias. A agonia de saber quando virá a próxima obra e a ansiedade que permeia o dilema entre querer escrever e não conseguir fazem-me, não raramente, questionar minha própria mente, minhas próprias mãos, minhas próprias canetas; quiçá essa inconstância da inspiração esteja relacionada a minha incapacidade de ser um bom escritor, que não sabe domar sua fonte de ideias. No entanto, é possível que uma inspiração indomada tenha chances maiores de dar luz a criações mais, digamos, selvagens. No bom sentido, é claro.
Pausa.
Retire a caneta de cima do papel. Deixe-a de lado por um instante. Inspiração. Expiração.
Pronto. Pode voltar. Obrigado pela paciência.
diástole
O grande defeito do ser humano é querer fazer do oceano sua piscina de quintal. É querer cortar o Everest pela metade, é querer fazer da natureza aquilo que ela não é e dela exigir o que está além de seu alcance, ainda que ela seja comprovadamente generosa em demasia. Assim o é em todo canto do universo e não apenas no nosso planetinha azul. Executando um clichê bastante abusado em textos contemporâneos que é esta metáfora pouco profunda mas que de fato funciona, devo dizer que o exemplo acima também se aplica à nossa discussão. Inspirações existem e vêm ao mundo de diversas maneiras distintas, assim como seus detentores. A meu ver, um bom artista é aquele que reconhece sua personalidade criativa, dialoga com suas nuances, respeita suas particularidades. Eu, por exemplo, tenho uma inspiração bastante forte, porém pontual. Por esse exato motivo, consigo escrever contos tranquilamente - ou, nos dias de hoje, talvez nem tanto assim. Percebo uma enorme dificuldade ao pensar num romance ou numa história mais prolongada, porque costumo perder os sentimentos quando sou interrompido, ou quando tenho que fazer minhas obras por partes (curiosidade: esta publicação apenas tinha seu primeiro parágrafo, e só foi retomada mais de vinte dias depois). Isso já me frustrou algumas vezes, mas não sinto o menor interesse de insistir em algo que não será frutífero. Talvez isso mude em algum momento futuro, mas não creio que seja bom antecipá-lo forçosamente. Quase sempre isso traz uma fadiga artística precoce.
Interrompi a escrita por alguns dias. Perdi o raciocínio, entrei em um novo ano, viajei. Achei que este texto estava perdido. Sim, eu já não me lembro exatamente da ideia inicial, e é muito provável que o que você está lendo agora tenha divergido radicalmente do que eu planejei quando primeiro pensei neste título. Contudo, extremamente útil é contar com a boa e velha ressignificação. Releituras são ferramentas incrivelmente poderosas. Ultimamente, faltam as ideias. Bem, que seja, então. Se não há nenhuma ideia, falemos da inexistência delas. Façamos um texto sobre cláusulas de contratos metafísicos, sobre inspiração, sobre descontrole criativo e epifania. Vamos falar de tudo isso! Se faltam as ideias, vamos falar: algo falta,
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