Importante: não sou especialista em arte, nem em machine learning. Este texto é apenas uma opinião, com a qual se pode concordar ou da qual se pode discordar. O debate está aberto.
Arte é uma coisa complicada e isso nunca foi novidade para ninguém. Assim como tantos outros conceitos nebulosos, as definições de arte e de seu propósito nunca foram totalmente precisas, ainda que haja incontáveis delas através dos séculos. Isso, é claro, se deve a sua volatilidade e a sua inconstância. A arte como produção é indissociável do fator temporal. Sim, muitas obras transcendem sua época, e essa vida longa lhes confere grande prestígio e sucesso. Não deixam de ser, porém, fruto do presente. Realismo, cubismo, impressionismo, dadaísmo - todos esses são movimentos artísticos distintos inseridos em tempos históricos distintos, cada qual com suas características, sua personalidade e seus artistas. Todos eles têm, entretanto, pelo menos dois aspectos em comum: o materialismo e a humanidade. Telas, paredes, cavernas, muros, esculturas... toda abstração artística sempre possuiu seu receptáculo concreto no mundo real. Além disso, tanto a concepção quanto a manufatura sempre tiveram os humanos como protagonistas. Mas, da segunda metade do século XX até aqui, emergiu um novo movimento, conhecido por arte contemporânea, cujo poder é capaz de abalar esses dois pontos em que toda a arte converge. Será que chegou a hora de inserir uma nota de rodapé na explicação e pôr uma exceção à regra?
Antes de tudo, uma breve contextualização deve ser feita, para que não se prejudique o entendimento desta discussão e/ou se tirem conclusões incorretas. Não há um consenso quanto ao início exato da arte contemporânea, mas é razoável dizer que o pós-guerra de 1945 é um forte candidato a estopim do movimento. Deve-se considerar ainda que há muitas vertentes de arte contidas nesse rótulo. O Pop Art, do queridíssimo Andy Warhol, a arte conceitual, a arte povera e o grafite são alguns exemplos. Logo de cara vemos o pluralismo de ideias e produções que a contemporaneidade nos trouxe. Para a análise que este texto propõe, no entanto, extraiamos desse mar de expressões a parte mais recente. A parte mais digital, computacional e virtual possível. Comecemos, então, pela parte menos metafísica.
Papel pixelado
Em primeiro lugar, existe uma dicotomia clara entre o fazer arte e o consumir arte nos dias de hoje. Enquanto a popularização do computador e da internet tornaram a propagação da arte extremamente fácil, com plataformas como o DeviantArt e o Pinterest, ainda há muita resistência ao meio virtual. O tradicionalismo e o materialismo são os dois motivos mais claros para essa aversão. Como dito anteriormente, toda a produção artística feita antes deste período havia seu correspondente físico, um objeto ao qual a ideia podia ser associada. De repente, novos artistas surgem com obras que não possuem essa correspondência. O apreço pelo tangível é confrontado a partir de novas noções de existência. Talvez haja até uma razão inconsciente e psicológica para isso. Arte digital pode parecer distante da realidade e, por conseguinte, distante de seu espectador, justamente por ser digital. Outro sentido foi adicionado à expressão "ter arte". É preciso se acostumar com essa nova perspectiva, pois ela provavelmente será a hegemônica daqui a algumas décadas. É apenas questão de tempo.
Quem é quem?
Outra reflexão que ganhou atenção nos últimos anos é ainda mais delicada e talvez aborde a própria filosofia da arte. São casos nos quais há a interferência da máquina no processo artístico. Impressoras capazes de reproduzir qualquer desenho a partir de coordenadas de um plano cartesiano, por exemplo. Por meio de cálculos, elas podem facilmente traçar qualquer reta, curva, plano... com precisão maior do que qualquer ser humano. Seriam elas melhores artistas do que nós? Será que nos tornaremos obsoletos diante de habilidades como essa?
Na verdade, não. Essas máquinas precisam ser ensinadas a fazer isso. Elas requerem instruções (bastante específicas, por sinal) para que possam funcionar corretamente e chegar ao resultado esperado. Por trás delas, há sempre um engenheiro, um programador. Cada movimento mecânico é dependente direto da ordem de quem as comanda. Mesmo que os responsáveis por montar e instruir tais máquinas não consigam desenhar ou realizar o trabalho "gráfico" necessário por si mesmos, nada seria das impressoras se não fossem suas mentes e criatividade. Os computadores seriam apenas médiuns da arte, que se encontra verdadeiramente nos seus criadores. Eles são pincéis - incrivelmente complexos e difíceis de se usar, de fato, mas apenas isso. O verdadeiro artista ainda é o ser humano. Mas... e se pudéssemos ir além? E se elevarmos a capacidade computacional e ultrapassássemos o campo da mera reprodução, chegando, assim, na criação?
Os fãs de ficção científica e estudantes da área já terão a resposta para essa pergunta: a inteligência artificial. É possível que um computador atinja tal grau de independência a partir, por exemplo, de algo chamado machine learning, isto é, aprendizado de máquina. O conceito é bastante fácil de se entender, até mesmo para os leigos. Utilizando algoritmos conhecidos como redes neurais, uma base de dados é fornecida para o computador. Ele, então, observa esses dados e tenta produzir suas próprias amostras, de modo que se aproximem o máximo das originais. O algoritmo modifica-se várias vezes conforme a proximidade avaliada, aprimorando-se a cada vez que repete esse processo (chamamos isso de iteração). Pense da seguinte maneira: uma criança que ainda não aprendeu a discernir os números 0 a 9 recebe várias fotos, cada uma com um desses algarismos. Ela deve aprender quais fotos são associadas com quais números. Nas primeiras tentativas, ela simplesmente adivinhará aleatoriamente qual é o número certo e inevitavelmente cometerá alguns erros. À medida que ela percebe esses erros, sua taxa de acerto vai aumentando, até que finalmente ela dirá com certeza o número correto em qualquer caso. O esquema abaixo ajuda a visualizar o método.
Transpondo esse processo para o caso em questão, pode-se fornecer a um algoritmo dessa natureza milhares de obras de arte e fazê-lo criar a sua própria versão de uma pintura ou de um desenho - já existe um "gerador de textos shakespearianos", por sinal. Claro que devem ser consideradas as gritantes diferenças de estilo e estética entre os movimentos, mas se, digamos, você quiser um quadro impressionista exclusivamente seu, por que não entupir uma rede neural de quadros de Monet e Renoir e emoldurar a bela criação feita em pleno século vinte e um por algumas centenas de linhas de código? E agora, quem é o artista? A máquina não recebeu nenhuma instrução, ela é uma autodidata por excelência. Como proceder em casos assim?
O xis da questão se encontra na própria estrutura das redes neurais. De novo, como tudo que é computacional, os números sempre são a resposta máxima. De forma resumida, o aprendizado de uma máquina se dá por alguns cálculos que permitem dizer apenas o quão próxima a criação feita pela rede está da base de dados. Em outras palavras, esse tipo de mecanismo é muito eficaz na identificação e reprodução de padrões. No caso do impressionismo, provavelmente você veria as mesmas coisas no seu quadro novo que estão presentes em qualquer outro do mesmo tipo: a falta de nitidez, as sombras luminosas e coloridas, etc. Ainda assim, foi necessário avaliar uma grande quantidade de quadros originais e treinar por bastante tempo para se chegar a esse resultado. Sempre há espaço para debate quando se discute o que é arte ou não, mas as redes neurais não fazem nada além de absorverem padrões e expressá-los de forma semi-original. Os traços das pinturas são intrinsecamente humanos, não há como eles serem espontaneamente desenvolvidos por um computador. Então, onde encontrar traços digitais? Traços que humanos não são capazes de produzir?
Uma das ramificações da arte contemporânea é a Glitch Art (figura abaixo). Ela nasce a partir de erros em dispositivos eletrônicos, analógicos ou digitais e tem conquistado espaço dentro da internet e fora dela. Em 2013, a fotógrafa Melanie Willhide teve seu notebook roubado. Quando a polícia conseguiu interceptar o ladrão e devolver seu aparelho, ela percebeu que suas fotos haviam sumido, porque seu computador fora formatado. Ela pôde reaver as fotos usando softwares de recuperação, mas a um custo: os dados haviam sido corrompidos, causando erros e distorções bizarras. Porém, Melanie decidiu fazer uma pequena mudança de planos e criou uma série com as fotos corrompidas, batizada de "Para Adrian Rodriguez, com amor". Adrian Rodriguez é o ladrão de seu notebook e agora tem uma série de fotos com seu próprio nome. Você pode ver o trabalho de Melanie aqui: http://www.vonlintel.com/Melanie-Willhide.html. Finalmente, o que podemos concluir de tudo isto?
Somos nós que vemos a arte em lugares inusitados. A arte é um subproduto da essência humana e, por isso, ela é tão importante para nós. Para os humanos, existe sempre um motivo por que fazer arte, seja ele qual for. É isto que nos difere dos computadores: por mais que eles possam ser mais precisos e mais rápidos, eles não são mais criativos. Para eles, não há a necessidade de se inventar algo como arte, é irrelevante. Seus "cérebros" são muito mais eficazes que os nossos, mas lhes falta o coração. E isso é algo que talvez nenhum algoritmo aprenda a replicar.
Somos nós que vemos a arte em lugares inusitados. A arte é um subproduto da essência humana e, por isso, ela é tão importante para nós. Para os humanos, existe sempre um motivo por que fazer arte, seja ele qual for. É isto que nos difere dos computadores: por mais que eles possam ser mais precisos e mais rápidos, eles não são mais criativos. Para eles, não há a necessidade de se inventar algo como arte, é irrelevante. Seus "cérebros" são muito mais eficazes que os nossos, mas lhes falta o coração. E isso é algo que talvez nenhum algoritmo aprenda a replicar.
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